Acórdão nº 040581 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 13 de Janeiro de 2004

Magistrado ResponsávelPOLÍBIO HENRIQUES
Data da Resolução13 de Janeiro de 2004
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo 1 RELATÓRIO 1.1. A... e mulher B..., identificados nos autos, instauraram no Tribunal Administrativo do Circulo do Porto acção de responsabilidade civil extracontratual contra a Câmara Municipal de Braga.

Por sentença de 21 de Dezembro de 1995 o TAC julgou a acção "como improcedente e não provada".

Inconformados, os Autores interpõem recurso dessa decisão para este Supremo Tribunal, apresentando alegações com as seguintes conclusões: 1ª - Mesmo considerando a oportuna correcção operada pela sentença recorrida, por causa de mero erro de escrita, sustenta-se que ainda assim existem nos autos sinais que revelam a inobservância, pela Ré, de normas constitucionais e de regras de ordem técnica e de prudência comum na obra que realizou; 2ª - Com essas obras, a Ré diminuiu o espaço útil da via, sacrificou o passeio junto do prédio dos AA. e destruiu uma rampa que existia nesse passeio, apenas com o propósito de construir uma faixa lateral com 3,10 metros de largura, o que excede folgadamente o indispensável a uma hemi-faixa de rodagem, já que é demasiado estreita para a circulação de dois veículos e mais que excessiva para a circulação dum só; 3ª - Daí que a destruição de parte do passeio e das rampas do prédio, que haviam sido construídas a expensas dos AA. e com licença da Ré, tenha sido perfeitamente desnecessária; 4ª - Assim sendo, pode reafirmar-se que uma vulgar atenção ao projecto e sua execução prática teriam permitido a realização plena da obra sem que daí adviessem para os AA. os danos que estão assentes, e cabia à Ré garantir essa compatibilização, em vez de, aleatória e injustificadamente, sacrificar o passeio, a rampa duma das entradas no prédio dos AA. e a possibilidade de manobra para entrada neste prédio; 5ª - Na verdade, a Administração deve actuar com justiça e imparcialidade no exercício das suas funções, como diz o art. 266°, n° 2, da C.RP., pelo que, não agindo assim, a Ré não observou os princípios constitucionais (art. 266°, n° 2) nem tão pouco as regras de prudência comum, o que tudo implica ilicitude por parte da mesma Ré (art. 6° do Dec.-Lei n° 48.051); 6ª - Ora, ao não decidir assim, a douta sentença recorrida violou naturalmente aquela disposição constitucional e este preceito da legislação ordinária; 6ª - Acresce que, no caso em apreço, existe presunção de culpa da Ré, que esta não ilidiu, o que a douta sentença recorrida nem sequer considerou, remetendo antes todo o ónus da prova para os AA., assim ofendendo, igualmente, o disposto no art. 493° do Código Civil; 7ª - Por outro lado, o douto aresto posto em crise não ponderou devidamente o art. 22° da C.RP., artigo que, de resto, consagra um dever geral do Estado de reparar os danos que a sua actuação provoca, e que tanto abrange a violação dos direitos, liberdades e garantias, como o mero prejuízo desligado daquela violação, conforme se deduz da utilização, no texto constitucional do vocábulo ou em vez de e; 8ª - Ao contrário do que sustenta o Meritíssimo Juiz a quo, a doutrina é quase unânime em considerar que este art. 22° tanto se aplica à responsabilidade extracontratual por factos ilícitos como a responsabilidade objectiva consagrada nos arts. 8° e 9° do Dec.-Lei n° 48.051, posição que, aliás, parece ser igualmente perfilhada pelo Tribunal Constitucional (vide Acórdão n° 153/90, de 3 de Maio); 9ª - Nem de outro modo se justifica o teor daquele preceito, já que a mera limitação do seu alcance à responsabilidade por factos ilícitos o tornaria ocioso, repetindo o consagrado em outras disposições constitucionais (vide, nomeadamente, os arts. 2°, 18°, 20°, 266°, n° 1, e 268°, n° 5, da Constituição); 10ª - Assim sendo, torna-se evidente que o referido art.

22° não estabelece quaisquer exigências quanto à natureza e volume do prejuízo sofrido, não se exigindo que seja elevado, especial ou anormal, pressupostos estes que estão contidos no Dec.-Lei n° 48.051, pelo que este diploma, de resto anterior ao texto constitucional, se deve ter, nessa parte, como inválido; 11ª - Deste modo, a douta sentença recorrida violou o citado art.

22° da C.R.P., uma vez que o prejuízo dos AA., aqui Recorrentes, é insofismável e significativo; 12ª - De resto, no caso em apreço, este prejuízo até decorre da violação dum direito fundamental - o direito de propriedade - na medida em que, como consequência directa e necessária da obra da Ré, foi restringida a normal fruição do prédio, que, só a título de exemplo, tem garagens que hoje não servem para nada; 13ª - Sustenta-se, em consequência, que, por força das obras da Ré, se operou uma modificação acentuada e grave, para não dizer supressão, da normal e lícita utilização do prédio pelos seus proprietários, isto quando tal prédio e seus elementos (particularmente garagens, central de gás, rampas, etc.) haviam sido objecto de licença camarária, que é uma autorização constitutiva de direitos; 14ª - Nesta linha, há mesmo quem defenda que deve reputar-se como expropriação, não translativa de propriedade, a mera imposição de vínculos particularmente gravosos sobre os bens (vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, a pag. 165); 15ª - Acresce que, por força da acentuada diminuição dos interesses de utilização da propriedade, esta se depreciou em perto de 15 mil contos, como está inequivocamente provado, o que ofende o disposto no art. 62°, n° 1, da C.RP., que justamente consagra uma garantia do valor da propriedade privada: 16ª - Donde, também a douta sentença recorrida violou este mesmo dispositivo constitucional; 17ª - Mesmo que assim se não entenda, sempre a Ré seria civilmente responsável por factos casuais, com base na chamada responsabilidade fundada no risco; 18ª - Com efeito, salvo o devido respeito, a douta sentença recorrida desembaraça-se rapidamente da análise desta questão, concluindo demasiado depressa que os prejuízos sofridos pelos AA. - a que chama alegados prejuízos -não estão relacionados com um qualquer acidente; 19ª - Ora, a não ser que se tenha pretendido usar acidente num sentido tão lato que nele caibam todos os factos ou actos susceptíveis de provocarem um prejuízo, na apreciação da chamada responsabilidade objectiva da Administração "não cabe distinguir entre actos voluntariamente dirigidos à imposição de sacrifícios (...) e actos lícitos de que acidentalmente resultem prejuízos" (vide "Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública, coordenação de Fausto de Quadros, pag. 206); 20ª - Daí que, mesmo só aplicando o direito transcrito no art. 8° do Dec.-Lei n° 48.051, interesse ponderar se a actividade da Ré pode ser considerada excepcionalmente perigosa, se o prejuízo sofrido é especial e se o mesmo é anormal; 21ª - A doutrina mais corrente qualifica hoje as obras públicas como trabalhos excepcionalmente perigosos, muito embora se entenda igualmente que a perigosidade deve ser fixada casuisticamente (Parecer da P.G.R. publicado no D.R., II série, n° 82, de 6/4/84, a pags. 96); 22ª - No caso dos autos, afigura-se existir excepcional perigosidade, quer à luz da doutrina prevalecente, quer numa análise casuística feita por via jurisprudencial; 23ª - Do mesmo modo, há que reputar, sem dúvida, como especial o prejuízo sofrido pelos AA., na medida em que foi um prejuízo isolado, que não atingiu a maioria dos munícipes que vivem na zona atingida pelas obras; 24ª - E igualmente há que considerar que se trata de prejuízo anormal, tanto pela sua extensão como pela sua natureza, tendo um peso insuportável para os AA. lesados; 25ª - Para mais, era à Ré que competia invocar a existência de caso de força maior ou a existência de culpa de outrem, o que manifestamente não fez; 26ª- E os mesmos pressupostos valem, como se sabe, para a responsabilidade com base em factos lícitos, reafirmando-se assim o considerável valor dos prejuízos sofridos e o facto de estes haverem recaído apenas sobre os AA." não devendo colher a posição do Meritíssimo Juiz a quo, que considera ter existido apenas uma limitação decorrente dos riscos da vida em sociedade; 27ª - Por outro lado, recusa-se a leitura que a sentença recorrida faz da doutrina aplicável ao caso em apreço, concluindo pela exclusiva ressarcibilidade dos prejuízos que afectem direitos subjectivos e pessoais ou reais ou de uma coisa e por isso afastando a pretensão dos AA., porque este seriam apenas titulares de meros interesses de facto e não viram afectado o chamado "gozo standard " do prédio; 28ª - Com efeito, um tal entendimento, que se apoia em posição primitiva de A. Queiró, que o próprio Mestre mais tarde amenizaria, de acordo com a qual a supressão do direito de acesso não gera qualquer indemnização, para além de não tomar em conta que as disposições em que A. Queiró se apoiou são hoje inválidas, face à actual Constituição, tem contra si a generalidade da doutrina; 29ª - Desde logo, porque, como defende o próprio Gomes Canotilho, se deve aplicar a cláusula geral da responsabilidade por forma a tomar em conta que certos casos de desafectação do direito de acesso originam sacrifícios especiais merecedores de reparação e aconselhando que, em hipóteses semelhantes à dos autos, sejam ponderados factores como a garantia da consistência jurídico- patrimonial do imóvel e o princípio da boa-fé que legitima uma forte expectativa jurídica dos proprietários confinantes - (O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, pag. 303); 30ª - Depois, porque, mesmo não atendendo a posições doutrinais que consideram o direito de acesso como um direito subjectivo ao uso de bens e serviços públicos - direito público de prestação - ou como um direito de liberdade, é pacífico que as vias públicas são, mesmo assim, bens de domínio público de uso comum, uso a fazer-se em conformidade com a afectação desse bem, e destinadas precisamente a permitir a circulação e a serventia dos prédios vizinhos, como assinala Laubadere (Obra...

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