Acórdão nº 0539/12 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 26 de Setembro de 2012

Magistrado ResponsávelCOSTA REIS
Data da Resolução26 de Setembro de 2012
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

A……, L.da intentou, no TAF de Sintra, contra o INFARMED - AUTORIDADE NACIONAL DO MEDICAMENTO E PRODUTOS DE SAÚDE, IP e, na qualidade de contra-interessada, a sociedade B……., BV providência cautelar pedindo a suspensão de eficácia dos actos de autorização de introdução no mercado (AIM) concedidos à contra-interessada dos medicamentos compostos pela substância activa Ziprasidona, bem como a intimação da entidade requerida a abster-se da prática de novos actos de concessão de AIMs de medicamentos compostos pela aludida substância activa.

Sem êxito já que, apesar daquele Tribunal ter entendido que se encontrava preenchido o fumus boni iuris - visto as questões suscitadas nestes autos serem controversas e necessitarem de indagação própria no processo principal, pelo que não era evidente procedência da pretensão a formular nesse processo nem manifesta a sua falta de fundamento - certo era que não ocorria o periculum in mora - visto que se aquela acção for julgada procedente a Requerente poderá ver reconstituida a situação jurídica que existiria à data da prática dos actos impugnados, pelo que ficou por demonstrar o receio da constituição de uma situação de facto consumado e a existência de prejuízos de difícil reparação.

Não se verificavam, assim, os pressupostos enunciados nas al.ªs b) e c) do n.° 1, do art.° 120.° do CPTA pelo que ficava prejudicada a ponderação dos interesses a que alude o n.° 2 do citado normativo.

Daí que tivesse indeferido os pedidos de adopção das requeridas providências.

Decisão que o TCA Sul confirmou, ainda que com diferente fundamentação.

É desta decisão que foi interposta a presente revista.

Nela a A……, L.da formulou as seguintes conclusões: 1.

No aresto recorrido, o Tribunal a quo considerou que é manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada na acção principal sem, porém, cuidar de apreciar as questões de inconstitucionalidade suscitadas. Este entendimento levou-o a considerar, na avaliação do fumus boni iuris, uma lei cuja inconstitucionalidade (e consequente desaplicação) foi suscitada pela Recorrente no presente processo cautelar e na respectiva acção principal.

  1. Em consequência, a questão de direito que ora se submete à apreciação deste Supremo Tribunal consiste em saber se um juiz cautelar pode julgar que não se verifica o fumus boni iuris com fundamento em que não cabe conhecer, sequer perfunctoriamente, de questões de constitucionalidade, questões estas que são fundamento essencial de procedência da acção principal. Esta questão incide sobre as próprias regras processuais das providências cautelares, não estando, com efeito, sujeita a um mero conhecimento sumário pelo tribunal. A questão refere-se a normas que são efectivamente aplicadas pelo juiz cautelar e não se coloca, naturalmente, no processo principal.

  2. Esta questão preenche ambos os requisitos alternativos de admissibilidade previstos no art.° 150°, n.° 1, do CPTA, uma vez que reveste importância fundamental, em virtude da sua relevância jurídica, e justifica a intervenção deste Tribunal de revista atenta a necessidade de uma melhor aplicação do direito.

  3. No que respeita a sua relevância jurídica, a questão suscitada revela uma acentuada “capacidade de expansão”, atenta a elevada frequência com que os administrados recorrem aos meios contenciosos de tutela cautelar. A questão colocar-se-á sempre que o autor de uma pretensão, cuja procedência dependa do conhecimento de uma questão de constitucionalidade, requeira uma providência cautelar para garantir o efeito útil da decisão judicial.

  4. Mas a admissão da revista mostra-se também necessária para uma melhor aplicação do direito, uma vez que o aresto recorrido comete, salvo o devido respeito, um erro manifesto e grosseiro. Com efeito, consistindo o fumus boni iuris numa avaliação da viabilidade da pretensão formulada no processo principal, é evidente que, quando essa procedência dependa de uma questão de constitucionalidade, essa questão tem necessariamente de ser considerada. De outra forma, não é logicamente possível avaliar o sucesso ou insucesso dessa acção.

  5. Conforme mencionado pelo Sr. juiz Desembargador Fonseca da Paz em voto de vencido proferido no recurso n.° 083171/11, do 2.° Juízo, 1ª Secção do TCA Sul, “não me parece que seja possível considerar aplicável ao caso a referida al. a) do n.º 1 artigo 120.° pois a norma do artigo 9 da Lei n.° 62/2011 suscita complexas questão de inconstitucionalidade”.

  6. O carácter evidente, grosseiro e grave do erro, alcança-se também considerando que essa interpretação dos poderes e deveres cognitivos do juiz cautelar conduz à negação da tutela cautelar a todos aqueles que deduzam uma pretensão cuja procedência dependa da desaplicação de uma norma inconstitucional.

  7. A referida caracterização do erro cometido é confirmada pela circunstância de esta interpretação dos poderes e deveres cognitivos do juiz cautelar ser inconstitucional.

  8. As acrescidas exigências para a admissão de recursos de revista em processos cautelares, não são aplicáveis na admissão do presente recurso, uma vez que a questão suscitada é própria do processo cautelar (não se colocando naturalmente na acção principal) e está sujeita a um juízo definitivo pelo juiz cautelar.

  9. O erro na interpretação e aplicação do critério de decretamento do fumus boni iuris é independente da versão concreta deste critério que esteja a ser utilizada (ou seja, das alíneas a), b) e c) do n. 1 do artigo 120.° do CPTA). O critério em causa consiste sempre numa avaliação perfunctória da viabilidade da pretensão deduzida no processo principal.

  10. Dependendo a procedência da acção principal de uma questão de constitucionalidade, evidente que uma avaliação perfunctória sobre essa procedência tem necessariamente de considerar (ainda que perfunctoriamente) essa mesma questão de constitucionalidade. Trata-se mesmo de uma imposição lógica.

  11. Ao não conhecer das questões de constitucionalidade, incluindo a sua apreciação perfunctória para concluir pela probabilidade de sucesso da acção principal, o Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação do critério do fumus boni iuris previsto no artigo 120.°, n.° 1, do CPTA.

  12. É claro e inequívoco que a norma do artigo 120°, n.° 1, do CPTA, interpretada no sentido em que não cabe nos processos cautelares a apreciação de questões de constitucionalidade (interpretação esta perfilhada no aresto recorrido), viola o disposto no artigo 268°, n.° 4, da CRP, na sua vertente do acesso à justiça cautelar, o que a fere de inconstitucionalidade material que aqui se argui expressamente para todos os efeitos.

  13. Para o caso deste Tribunal de revista se substituir ao Tribunal recorrido na aplicação do critério de decretamento aqui em causa, cumpre salientar que a Recorrente requereu no presente processo uma providência cautelar de natureza conservatória. Com efeito, ainda que se considerasse ia casa inaplicável o artigo 120°, n.° 1, alínea a) do CPTA, impunha-se a aplicação da alínea b) do citado artigo que a este respeito apenas exige que “não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular na acção principal”.

  14. A desaplicação da Lei n.° 62/2011 ao caso dos autos, defendida pela Recorrente, assenta em fundamentos (isto é, inconstitucionalidades) sérios, sólidos e sustentados com recurso a mais autorizada doutrina e jurisprudência. Não se vislumbra, na verdade, qualquer incorrecção manifesta que autorize o juiz cautelar a concluir pela manifesta improcedência da referida desaplicação.

  15. Os direitos de propriedade industrial, nestes se incluindo os direitos relativos a patentes de medicamentos, são uma modalidade especial do direito de propriedade e, nessa medida, encontram-se sujeitos ao mesmo regime, conforme já decido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.° 257/92, de 13 de Julho de 1992.

  16. Ao contrário da qualificação como interpretativa, feita no n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.° 62/2011, das alterações introduzidas pela mesma lei à redacção dos artigos 19º, 25° e 179,° do Estatuto do Medicamento, e da nova disposição relativa a aspectos do regime da autorização de preços do medicamento constante do artigo 8.° da Lei n.° 62/2011, tais normas são efectivamente inovadoras.

  17. Em consequência é clara e inequívoca a violação do princípio da legítima confiança por parte da norma do artigo 9°, n.° 1, 2 e n.° 3, da Lei n.° 62/2011, o que a fere de inconstitucionalidade material que aqui se argui expressamente para todos os efeitos.

  18. E também em consequência, por todos estes motivos, e por cada um deles, deve ser recusada a aplicação do disposto no artigo 9.° da Lei n° 62/2011, aplicando-se ao caso dos autos o regime legal em vigor à data da prática dos actos em crise, no sentido acima recapitulado e definido por jurisprudência uniforme do Tribunal Central Administrativo Sul.

  19. Subsidiariamente: o regime constante dos n.°s 1, 2 e 3 do art.° 9º da Lei n.° 62/2011 determina um vazio de tutela jurisdicional, porque nega a possibilidade de atacar as autorizações de introdução no mercado e os actos de fixação de PVP junto dos tribunais administrativos (por força do novo regime substantivo criado), e impede a prática de tais actos através do prévio recurso à arbitragem necessária prevista na nova lei como o meio adequado de resolver as questões de direitos de propriedade industrial suscitadas em relação com aqueles procedimentos administrativos (o que se alega sem prejuízo de se considerar que o mecanismo de “composição de litígios” criado pela nova lei é, ele próprio, também inconstitucional).

  20. Com efeito, conforme julgou muito recentemente o TCA Sul em acórdão proferido, por unanimidade, no passado dia 15 de Março de 2012, pelo 2.° Juízo, 1ª Secção, num processo em que igualmente estava em causa a legalidade de AIM praticadas antes da entrada em vigor da nova lei, o seguinte: “Assim, estando em causa um litígio de natureza administrativa (validade de um acto administrativo que concedeu uma licença) deve...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT