Acórdão nº 0302/12 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 28 de Junho de 2012

Magistrado ResponsávelADÉRITO SANTOS
Data da Resolução28 de Junho de 2012
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam, na Secção do Contencioso Administrativo, do Supremo Tribunal Administrativo: 1.

A…… e B……, LDA, ambas identificadas nos autos, vieram interpor recurso de revista, nos termos do art. 150 do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), de 19.1.12, pelo qual foi negado provimento ao recurso interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Lisboa, que julgou improcedente o pedido cautelar de suspensão de eficácia dos atos administrativos praticados pela Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, IP (INFARMED), de Autorização de Introdução no Mercado (AIM’s) do medicamento Sildenafil F……, bem como de intimação desta entidade a abster-se da prática de actos de concessão de AIM’s de medicamentos compostos pela substância activa Sildenafil.

Apresentaram alegação (fls. 1360, ss., dos autos), na qual formularam as seguintes conclusões: 1.ª No aresto recorrido, o Tribunal a quo considerou que “não cabe discutir num processo cautelar, [...] se [uma lei] viola ou não a CRP”. Este entendimento levou-o a considerar, na avaliação do fumus boni iuris, uma lei cuja inconstitucionalidade (e consequente desaplicação) foi suscitada pelas Recorrentes no presente processo cautelar e na respectiva acção principal.

  1. Em consequência, a questão de direito que ora se submete à apreciação deste Supremo Tribunal consiste em saber se um juiz cautelar pode julgar que não se verifica o fumus boni iuris com fundamento em que não cabe conhecer, sequer perfunctoriamente, de questões de constitucionalidade, questões estas que são fundamento essencial de procedência da acção principal. Esta questão incide sobre as próprias regras processuais das providências cautelares, não estando, com efeito, sujeita a um mero conhecimento sumário pelo tribunal. A questão refere-se a normas que são efectivamente aplicadas pelo juiz cautelar e não se coloca, naturalmente, no processo principal.

  2. Esta questão preenche ambos os requisitos alternativos de admissibilidade previstos no artigo 150.º, n.º 1, do CPTA, uma vez que reveste importância fundamental, em virtude da sua relevância jurídica, e justifica a intervenção deste Tribunal de revista atenta a necessidade de uma melhor aplicação do direito.

  3. No que respeita a sua relevância jurídica, a questão suscitada revela uma acentuada “capacidade de expansão”, atento a elevada frequência com que os administrados recorrem aos meios contenciosos de tutela cautelar. A questão colocar-se-á sempre que o autor de uma pretensão, cuja procedência dependa do conhecimento de uma questão de constitucionalidade, requeira uma providência cautelar para garantir o efeito útil da decisão judicial.

  4. Mas a admissão da revista mostra-se também necessária para uma melhor aplicação do direito, uma vez o aresto recorrido comete, salvo o devido respeito, um erro manifesto e grosseiro. Com efeito, consistindo o fumus boni iuris numa avaliação da viabilidade da pretensão formulada no processo principal, é evidente que, quando essa procedência dependa de uma questão de constitucionalidade, essa questão tem necessariamente de ser considerada. De outra forma, não é logicamente possível avaliar o sucesso ou insucesso dessa acção.

  5. O carácter evidente, grosseiro e grave do erro, alcança-se também considerando que essa interpretação dos poderes e deveres cognitivos do juiz cautelar conduz à negação da tutela cautelar a todos aqueles que deduzam uma pretensão cuja procedência dependa da desaplicação de uma norma inconstitucional.

  6. A referida caracterização do erro cometido é confirmada pela circunstância de esta interpretação dos poderes e deveres cognitivos do juiz cautelar ser inconstitucional.

  7. As acrescidas exigências para a admissão de recursos de revista em processos cautelares, não são aplicáveis na amissão do presente recurso, uma vez que a questão suscitada é própria do processo cautelar (não se colocando naturalmente na acção principal) e está sujeita a um juízo definitivo pelo juiz cautelar.

  8. O erro na interpretação e aplicação do critério de decretamento do fumus boni iuris é independente da versão concreta deste critério que esteja a ser utilizada (ou seja, das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA). O critério em causa consiste sempre numa avaliação perfunctória da viabilidade da pretensão deduzida no processo principal.

  9. Dependendo a procedência da acção principal de uma questão de constitucionalidade, é evidente que uma avaliação perfunctória sobre essa procedência tem necessariamente de considerar (ainda que perfunctoriamente) essa mesma questão de constitucionalidade. Trata-se mesmo de uma imposição lógica.

  10. Ao considerar que em processos cautelares não cabe conhecer de questões de constitucionalidade, incluindo a sua apreciação perfunctória para concluir pela probabilidade de sucesso da acção principal, o Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação do critério do fumus boni iuris previsto no artigo 120.º, n.º 1, do CPTA.

  11. É claro e inequívoco que norma do artigo 120.º, n.º 1 do CPTA, interpretada no sentido em que não cabe nos processos cautelares a apreciação de questões de constitucionalidade (interpretação esta perfilhada no aresto recorrido), viola disposto no artigo 268.º, n.º 4, da CRP, na sua vertente do acesso à justiça cautelar, o que a fere de inconstitucionalidade material que aqui se argui expressamente para todos os efeitos.

  12. Para o caso de este Tribunal de revista se substituir ao Tribunal recorrido na aplicação do critério de decretamento aqui em causa, cumpre salientar que as Recorrentes requererem no presente processo uma providência cautelar de natureza conservatória. Com efeito, ainda que se considerasse in casu inaplicável o artigo 120.º, n.º 1, alínea a) do CPTA, impunha-se a aplicação da alínea b) do citado artigo que a este respeito apenas exige que “não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular na acção principal”.

  13. A desaplicação da Lei n.º 62/2011 ao caso dos autos, defendida pelas Recorrentes, assenta em fundamentos (isto é, inconstitucionalidades) sérios, sólidos e sustentados com recurso à mais autorizada doutrina e jurisprudência. Não se vislumbra, na verdade, qualquer incorrecção manifesta que autorize o juiz cautelar concluir pela manifesta improcedência da referida desaplicação.

  14. Os direitos de propriedade industrial, nestes se incluindo os direitos relativos a patentes de medicamentos, são uma modalidade especial do direito de propriedade e, nessa medida, encontram-se sujeitos ao mesmo regime, conforme já decido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 257/92, de 13 de Julho de 1992.

  15. Ao contrário da qualificação como interpretativa, feita no n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 62/2011, das alterações introduzidas pela mesma lei à redacção dos artigos 19.º, 25.º e 179.º do Estatuto do Medicamento, e da nova disposição relativa a aspectos do regime da autorização de preços do medicamento constante do artigo 8.º da Lei n.º 62/2011, tais normas são efectivamente inovadoras.

  16. Em consequência é clara e inequívoca a violação do princípio da legítima confiança por parte da norma do artigo 9.º, n.º 1, 2 e n.º 3, da Lei n.º 62/2011, o que a fere de inconstitucionalidade material que aqui se argui expressamente para todos os efeitos.

  17. E também em consequência, por todos estes motivos, e por cada um deles, deve ser recusada a aplicação do disposto no artigo 9.º da Lei n.º 62/2011, aplicando-se ao caso dos autos o regime legal em vigor à data da prática dos actos em crise, no sentido acima recapitulado e definido por jurisprudência uniforme do Tribunal Central Administrativo Sul.

  18. Subsidiariamente: o regime constante dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 9.º da Lei n.º 62/2011 determina um vazio de tutela jurisdicional, porque nega a possibilidade de atacar as autorizações de introdução no mercado e os actos de fixação de PVP junto dos tribunais administrativos (por força do novo regime substantivo criado), e impede a prática de tais actos através do prévio recurso à arbitragem necessária prevista na nova lei como o meio adequado de resolver as questões de direitos de propriedade industrial suscitadas em relação com aqueles procedimentos administrativos (o que se alega sem prejuízo de se considerar que o mecanismo de “composição de litígios” criado pela nova lei é, ele próprio, também inconstitucional).

  19. Em consequência, o regime constante dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 9.º da Lei n.º 62/2011 viola, também por esta via, o princípio da protecção da confiança e o princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos lesados por aqueles actos administrativos (AIMs e actos de fixação de PVP), padecendo de inconstitucionalidade material.

  20. Subsidiariamente: a norma do artigo 25º, n.º 2, do Estatuto do Medicamento, na redacção conferida pelo artigo 4.º da Lei n.º 62/2011, na medida em expressamente determina que o pedido de AIM não pode ser indeferido com fundamento na violação dos...

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