Acórdão nº 01070/08 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 12 de Fevereiro de 2009

Magistrado ResponsávelRUI BOTELHO
Data da Resolução12 de Fevereiro de 2009
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: I Relatório A... LDA, com melhor identificação nos autos, vem recorrer, nos termos do art.º 150 do CPTA, do acórdão do TCA - Sul, de 25.8.08, que revogou a sentença do TAF de Loulé, de 26.3.08, que havia indeferido o pedido de suspensão de eficácia requerida por QUERCUS - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA e B..., com os sinais dos autos, contra o MUNICÍPIO DE TAVIRA.

Terminou as suas alegações apresentando as seguintes conclusões: 1.ª O presente recurso de revista fundamenta-se tanto no pressuposto da existência de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental quanto pela evidência de a admissão do presente recurso ser claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

  1. No que se refere à importância fundamental da questão, cumpre assinalar que a presente revista se destina a esclarecer se o conflito entre direitos fundamentais, nomeadamente entre o direito ao ambiente e qualidade de vida e os direitos de propriedade privada e de livre iniciativa económica, consagrados respectivamente nos artigos 66°, 62.° e 61.° da Constituição da República Portuguesa ("CRP"), pode ser resolvido através de uma supra/infra ordenação de direitos levada a efeito em termos abstractos e apriorísticos, dispensando a ponderação concreta dos danos para os interesses em presença.

  2. Quanto à necessidade de admissão do recurso para melhor aplicação do Direito, importa notar que de acordo com a doutrina vertida no Acórdão recorrido, quando a suspensão de eficácia de uma licença de construção seja requerida por motivos de protecção ambiental, os requisitos do fumus non malus juris e do periculum in mora bastam-se com a mera invocação, não carecendo de demonstração, ainda que indiciária, pelo que, a proceder tal doutrina, o fundado receio de constituição de uma situação de facto consumado lesiva do ambiente, ou da produção de prejuízos de difícil reparação para o ambiente, considerar-se-á verificado em situações de mera eventualidade, sem necessidade de demonstração da existência de um risco efectivo de lesão.

  3. O direito ao ambiente, o urbanismo e o ordenamento do território são questões de particular relevo comunitário, a questão em apreço é susceptível de ser recolocada em litígios futuros e a procedência da tese plasmada no Acórdão recorrido poderá conduzir a um uso, mais do que indevido, manifestamente reprovável da tutela jurisdicional cautelar, já que qualquer cidadão ou associação ambiental, por intermédio da proposição de uma providência cautelar conservatória, passará a poder obter dos Tribunais a suspensão de eficácia de uma licença de construção legalmente obtida pelo proprietário de um terreno, com base na mera alegação - repita-se, sem necessidade de demonstração sumária, sequer - de eventuais danos ambientais.

  4. Por todos os motivos expostos nas conclusões anteriores, o conhecimento da presente revista é indispensável para a boa aplicação do Direito, sendo certo que a repercussão e interesse do presente litígio extravasam a concreta relação jurídica entre as partes, assumindo a questão, pela sua relevância jurídica e social, uma importância fundamental, pelo que deverá esse Venerando Tribunal chamar a si a resolução desta questão controvertida.

  5. Não tendo ficado demonstrado, nem sequer de forma indiciária, que o posto de exposição e escritórios se encontra implantado em terrenos integrados na RAN e beneficiados pelo AHSA, bem andou o Tribunal a quo ao julgar que "não é evidente que a pretensão do processo principal seja procedente, nem o inverso, pelo que não se verifica a situação prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º deste preceito". O Acórdão recorrido não merece, por isso, qualquer censura no que toca à (não) aplicação da alínea a) do n.° 1 do artigo 120.° do CPTA.

  6. Para que se verificasse o periculum in mora, cabia aos Requerentes demonstrar, ainda que de forma meramente indiciária, que a construção em crise se encontra implantada em terrenos integrados na RAN e afectos ao AHSA, pois que apenas nessa hipótese se poderia considerar posto em causa o interesse público na protecção do ambiente.

  7. De acordo com o douto Acórdão recorrido, "os factos dados como indiciados não permitem concluir com razoável segurança num ou noutro dos sentidos quanto ao tipo de terreno [i.e. se a construção em crise se encontra, ou não, implantada em terrenos classificados como RAN e beneficiados pelo AHSA, ao contrário do que se decidiu na sentença ora recorrida", donde se revela inequívoco que o TCAS não efectuou qualquer juízo, definitivo ou perfunctório, no sentido de que a construção em questão se encontra implantada em solos da RAN e do AHSA. (cfr. pág. 16 do Acórdão).

  8. Não tendo o TCAS julgado, sequer indiciariamente, que a construção controvertida se encontra implantada em solos da RAN e do AHSA, forçoso será concluir que a verificação dos danos para o meio ambiente invocados Recorridos não passa do plano das conjecturas, apenas tendo sido configurada a sua efectivação como possível ou eventual.

  9. Tendo concedido a providência requerida sem que, para tanto, se encontrassem preenchidos os requisitos legalmente impostos, designadamente o do periculum in mora, o douto Acórdão recorrido violou o disposto no artigo 120°, n.° 1 do CPTA.

  10. Não resultando da matéria de facto dada como provada que a construção dos autos se localiza em RAN e na área de incidência do AHSA, o TCAS, na aplicação do Direito levada a efeito no Acórdão em crise, violou as normas jurídicas básicas atinentes repartição do ónus da prova.

  11. Com efeito, se os factos dados como indiciados, segundo o Tribunal a quo, não permitem um juízo seguro, ainda que sumário, sobre a inserção ou não do terreno em RAN e na área de incidência do AHSA, dúvidas não restam que, ao decretar a presente providência, o Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 342.° do Código Civil e 516.° do Código de Processo Civil, relativos ao ónus da prova, pois na omissão de prova segura, ainda que indiciária, sobre tal facto, não podia o Tribunal a quo tê-lo considerado provado.

  12. No que se refere ao preenchimento do requisito do fumus non malus juris, indispensável para o decretamento da providência em apreço, cumpre salientar que, resultando, por um lado, do princípio da repartição do ónus da prova material, e por outro, dos documentos juntos aos autos, que a construção em crise não se localiza em RAN nem tão-pouco na área de incidência do AHSA, deveria o TCAS ter julgado manifesta a falta de fundamento da pretensão a formular no processo principal. Como tal, por força da aplicação do artigo 120.° do CPTA, deveria o Tribunal a quo ter negado provimento ao recurso interposto pelos Requerentes, ora Recorridos. Não o tendo feito, o Acórdão recorrido violou a citada disposição legal.

  13. A ponderação de interesses levada a efeito no Acórdão recorrido, para além de assentar em meras pressuposições e conjecturas, é deliberadamente abstracta e apriorística, limitando-se o TCAS a contrapor, sem qualquer referência às circunstâncias do caso concreto, por um lado, os interesses "ligados à defesa do meio ambiente, pressupondo que se trata de área protegida", e por outro, o "direito da Contra-Interessada em construir em terreno seu, admitindo que lhe assiste esse direito, face às normas do PDM de Tavira", tendo concluído que "a preservação do meio ambiente, um interesse colectivo, estadual inclusive, deve prevalecer sobre o interesse particular da Contra-Interessada".

  14. Ou seja, de acordo com a doutrina vertida pelo TCAS no douto Acórdão recorrido, na ponderação de interesses a realizar no âmbito da decisão de decretar, ou não, uma providência cautelar de suspensão de eficácia de uma licença de construção, o direito ao ambiente deverá prevalecer, em abstracto, sobre os direitos de propriedade privada e de livre iniciativa económica do seu titular.

  15. Contudo, para uma solução, e juridicamente adequada, cumpre reconhecer que a ponderação a realizar não pode limitar-se a uma mera ordenação abstracta de interesses previamente escalonados, antes devendo reportar às circunstâncias do caso concreto. A este propósito, veja-se o que afirmam MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, segundo os quais "(...) a prevalência a dar a uns ou a outros [interesses] depende da gravidade dos danos que, no caso concreto, se perspectivam, sendo lógico que se faça prevalecer os interesses de conteúdo patrimonial que corram o risco de sofrer graves prejuízos sobre interesses imateriais que apenas corram o risco de sofrer prejuízos pouco significativos".

  16. Ademais, conforme afirma GOMES CANOTILHO, "o princípio da interpretação mais amiga do ambiente («princípio da melhor protecção possível do ambiente», princípio do efeito útil ecológico»,) (..) não goza, em termos apriorísticos e abstractos, de uma prevalência absoluta, sendo "juridicamente incorrecto dizer que o direito ao ambiente «pesa», «vale mais» ou «é mais forte» do que o direito de propriedade ou o direito de iniciativa económica privada". Aliás, direito ao ambiente e direito de propriedade tratam-se ambos de "direitos fundamentais constitucionais de natureza económica, social e cultural, garantidos com o mesmo título e a mesma «força» pela Constituição da República de 1976".

  17. Ao proceder a uma ponderação de interesses meramente abstracta e apriorística, sobrepondo a preservação do meio ambiente ao interesse particular da Contra-interessada sem concretizar, sequer, qualquer um dos dois interesses ponderados, o Acórdão recorrido violou o disposto no n.° 2 do artigo 120.° do CPTA, motivo pelo qual deverá ser revogado.

  18. O n.° 2 do artigo 120.° do CPTA prevê que, mesmo quando se encontram preenchidos os requisitos da alínea b) do n.° 1 do mesmo artigo, a decretação de uma providência pode ser recusada com base numa ponderação dos interesses públicos e privados em presença na...

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