Acórdão nº 0185/15 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 20 de Maio de 2015

Magistrado ResponsávelCASIMIRO GONÇALVES
Data da Resolução20 de Maio de 2015
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: RELATÓRIO 1.1.

A………. e outros, todos com os demais sinais dos autos, vêm interpor recurso de revista excepcional, nos termos do art. 150º do CPTA, do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul em 30/10/2014, no processo que aí correu termos sob o nº 7366/14.

1.2.

Terminam as alegações formulando as Conclusões seguintes: A. A decisão do TCAS de que se recorre (i) incide sobre uma questão que envolve todos os notários portugueses, (ii) diz respeito ao tema mais importante que se coloca à fiscalidade nesta década e (iii) padece de um erro judicial patente e ostensivo.

  1. Cada uma desta tríplice fundamentante reveste este caso, por si só, de importância essencial e faz com que a admissão deste recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito.

    C.

    Subjetivamente, o tema em causa nos autos afeta, como se referiu, todos os Notários portugueses (que, no conjunto, são 350, para sermos mais exatos), tendo, cada um deles, intentado impugnações judiciais, em coligação de autores, semelhantes à presente, e que correm nos tribunais tributários.

    D.

    Objetivamente, está em causa o tema fiscal mais importante desta década e que é a distinção entre imposto e taxa, mais concretamente no que diz respeito ao tributo previsto no artigo 16º, nº 1, da Portaria nº 385/2004, de 16 de Abril.

    E.

    In casu, o TCAS, numa leitura grosseiramente equivocada (com todo o respeito, que é muito) sobre a diferença conceptual entre imposto e taxa, profere uma decisão que literalmente implode com décadas de doutrina e de jurisprudência.

  2. O tributo aqui em causa é manifestamente ilegal e inconstitucional, já que configura um imposto (sendo, por isso, organicamente inconstitucional) e, mesmo que assim não fosse, seria ostensivamente ilegal, na medida em que foi cobrado sem ter sido fornecida qualquer uma das contraprestações previstas na norma.

  3. No que respeita aos sistemas de comunicação, de tratamento e de armazenamento da informação do Ministério da Justiça – que seria, nos termos do artigo 16º da Portaria nº 385/2004, uma contraprestação pública enquadrada na taxa em causa –, a inconstitucionalidade é evidente, visto que o Estado nunca conferiu aos Notários o acesso a qualquer sistema que justificasse o pagamento de uma taxa.

  4. A utilização dos sistemas que, no entender do Secretário de Estado da Justiça, justifica o pagamento do tributo só foram disponibilizados muitos anos depois do início do pagamento do tributo e, o que é mais grave, são disponibilizados gratuitamente a todos os cidadãos e empresas (conforme resultou provado nos autos).

    I. Ou se considera que as quantias previstas no artigo 16º da Portaria nº 385/2004 são também imputáveis à utilização desses serviços ou sistemas (o que apenas se admite por dever de patrocínio e não resulta da factualidade assente), e então a taxa é inconstitucional por violação grosseira do princípio da igualdade, ou não se considera que tais quantias são imputáveis à utilização desses serviços, e então a taxa não terá qualquer causa ou serviço concreto que a justifique, e será consequentemente um imposto, logo, inconstitucional por violação do princípio da legalidade fiscal, previsto no do artigo 165º, nº 1, alínea i), da CRP e ilegal por violação do nº 2 do artigo 4º da LGT.

  5. Não há forma de escapar a um dos vícios sem cair no outro, ou então mais vale assumir, parafraseando o nome de um livro de Gomes Canotilho, que os princípios constitucionais nem sempre são para ser tomados a sério.

  6. O próprio Governo, reconhecendo tardiamente a iniquidade desta suposta “taxa”, procedeu à sua revogação, pela Portaria nº 574/2008, de 4 de Julho.

    L. O TCAS contorna esta óbvia ilegalidade, argumentando que o tributo aqui em causa é, afinal, uma “taxa de licença” que “remove um obstáculo jurídico à outorga da fé pública documental”.

  7. Este argumento – de que nem a Impugnada se lembrou – não procede por três motivos fundamentais.

  8. Em primeiro lugar, o legislador teria mentido descaradamente, pois as contraprestações previstas na norma que estabelece este tributo nada têm que ver com a “remoção” de qualquer “obstáculo jurídico” à atividade inerente à função de Notário.

  9. Em segundo lugar, uma taxa de licença estabelecia por Portaria viola o Decreto-Lei nº 26/2004, de 4 de fevereiro, que aprovou o Estatuto do Notariado, já que este regula todo o processo de atribuição de licenças de notariado, sem estabelecer qualquer tributo a cargo dos Notários para a obtenção da licença ou para a remoção de um obstáculo jurídico para o exercício da atividade.

  10. Em terceiro lugar, esta interpretação torna este tributo ilegal por violação da Lei de Autorização Legislativa, uma vez que a Lei nº 49/2003, de 22 de agosto, que autorizou o Governo a aprovar o novo regime jurídico do notariado, atribuiu ao Governo competência para, por Decreto-Lei, definir as condições de atribuição e perda da licença e do regime de licenciamento, não podendo o Ministro da Justiça estabelecer uma taxa de licença por Portaria.

  11. Temos assim que, com todo o devido respeito, o TCAS “resolve” a inconstitucionalidade e ilegalidade apontada, transformando o tributo aqui em causa em algo que manifestamente não é – e, se fosse, violaria de forma grosseira a Lei nº 49/2003, de 22 de agosto, e o Decreto-Lei nº 26/2004, de 4 de fevereiro.

  12. No que diz respeito aos Serviços de Auditoria e Inspeção, que também se encontram elencados no artigo 16º da Portaria, igualmente aqui não há qualquer prestação de serviços, pelo que, também nesta parte, a “taxa” do artigo 16º da Portaria nº 385/2004 não consubstancia um tributo causal, mas um verdadeiro imposto “travestido” de taxa, que, nos termos da Constituição, só poderia ser criado por Lei da Assembleia da República, violando-se assim o artigo 165º, nº 1, alínea i), da Lei Fundamental.

  13. Na parte que se reporta a estes Serviços de Auditoria e Inspeção, esta taxa, se não for – como parece – puramente artificial, destina-se, no máximo, a financiar as estruturas orgânicas do Estado dedicadas a tais serviços, se é que elas existem, sendo que este financiamento torna o tributo num imposto (Ac. do TC nº 473/99) ou torna-o ilegal por ausência de contraprestação.

  14. Tal como a inspeção tributária não justifica o pagamento de uma taxa aos potenciais inspecionados, também a inspeção dos Notários não o pode justificar.

  15. O TCAS nunca responde a esta patente ausência da contraprestação, argumentando, uma vez mais, com a natureza de “taxa de licença”.

    V. A suposta utilização do Arquivo Público também não justifica o pagamento de uma taxa, visto que a guarda e conservação do arquivo notarial é um dever dos Notários, tal como dispõe a alínea m) do nº 2 do artigo 4º do Código do Notariado.

  16. Pretender cobrar uma taxa aos Notários pela utilização do arquivo notarial tem a mesma lógica subjacente a cobrar uma taxa aos Tribunais por estes guardarem e utilizarem os processos judiciais ou às entidades particulares certificadoras da inspeção automóvel por guardarem os processos administrativos.

    X. Se a referência a “arquivo público” constante do artigo 16º da Portaria dissesse (também ou apenas) respeito ao acervo documental que constava dos cartórios notariais públicos que foram objeto do processo de privatização e que ficaram à guarda dos Notários “privados”, vislumbrar-se-iam duas inconstitucionalidades: a primeira, resultante da cumulação das despesas, no património do particular (do Notário), da despesa com a taxa e da despesa com a manutenção do Arquivo, em grosseira violação do princípio da proporcionalidade (previsto no artigo 266º, nº 2 da CRP); a segunda, resultante de, também aqui, nesta parte do Arquivo Público, não haver qualquer prestação de serviço público.

  17. A isto o TCAS respondeu que não se verifica a falta de serviço público… porque a verificação do cumprimento do dever que recai sobre os notários cabe ao Estado! Z. Mas a verificação do cumprimento dos deveres legais não cabe sempre ao Estado? E por isso alguém tem de pagar uma taxa?? AA. Uma demonstração de que esta “taxa” é um imposto (uma “taxa” desligada de qualquer utilização especial de um serviço público) é o modo (e critério) do apuramento do seu valor, pois recai sobre todos os atos praticados por todos os Notários, independentemente de qualquer outro facto.

    BB. Mesmo que assim não se considere (o que não se vê como), a “taxa” em apreço sempre seria manifesta e gritantemente desproporcional – e é tanto mais desproporcional quanto mais se dessem por inexistentes as diferentes causas que supostamente a justificam, elencadas no artigo 16º da Portaria nº 385/2004.

    CC. Se o Governo criou uma “taxa” devida supostamente por três contraprestações públicas e lhes fez corresponder um montante proporcional de € 10 por cada escritura e de € 3 por cada um dos demais atos que o Notário pratica, essa taxa é inevitavelmente inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, mesmo que venha a constatar-se que afinal há uma contraprestação pública – não se vê qual –, então os montantes em causa, estabelecidos para as três contraprestações, são necessariamente desajustados à realidade, pecando por excesso.

    DD. A desproporcionalidade elimina ou desvirtua a correspetividade inerente ao conceito de taxa, de onde se conclui que o tributo em causa nos autos constitui um imposto.

    EE. Face ao acima exposto, os atos de autoliquidação aqui em causa representam uma injustiça grave e notória e foram efetuados em erro, imputável aos serviços nos termos do nº 2 do artigo 78º da LGT.

    FF. Como este Venerando STA certamente reconhecerá, a criação, por Portaria, de uma suposta taxa com violação grosseira da CRP e do disposto no nº 2 do artigo 4º da LGT e é a questão mais importante da fiscalidade atual, revestindo assim uma relevância fundamental para efeitos do artigo 150º do CPTA.

    GG. A questão nos autos é a questão...

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