Acórdão nº 0949/14 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 19 de Março de 2015
Magistrado Responsável | CARLOS CARVALHO |
Data da Resolução | 19 de Março de 2015 |
Emissor | Supremo Tribunal Administrativo (Portugal) |
Acordam em conferência no Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: 1.
RELATÓRIO 1.1. MUNICÍPIO DE ARCOS DE VALDEVEZ, MUNICÍPIO DE BARCELOS, MUNICÍPIO DE ESPOSENDE, MUNICÍPIO DE PONTE DA BARCA, MUNICÍPIO DE PONTE LIMA e MUNICÍPIO DE VIANA DO CASTELO, devidamente identificados nos autos, instauraram no Supremo Tribunal Administrativo [doravante «STA»] contra o CONSELHO DE MINISTROS [doravante «CM»] e os contrainteressados: a) AGRUPAMENTO “B…………” e “C…………”; b) AGRUPAMENTO “D…………, SA” e “E…………”; c) “F…………, SA”; d) “G…………”; e) “AGRUPAMENTO “H…………, SA” e “I…………, SA”; f) AGRUPAMENTO “J…………, SA”, “L…………, SGPS, SA” e “M…………, SA”, todos igualmente identificados nos autos a fls. 58 v./59, a providência cautelar de suspensão de eficácia dos “atos administrativos praticados nos artigos 2.º, 3.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 101/2014, de 2 de Julho, que procedem à alteração dos artigos 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º do Decreto-Lei n.º 114/96, de 5 de Agosto (que criou o sistema multimunicipal de triagem, recolha seletiva, valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos do Vale do Lima e Baixo Cávado, constituiu a entidade gestora do referido sistema multimunicipal, a A…………, SA e aprovou os seus estatutos)” e dos “atos administrativos praticados nos artigos 4.º, 5.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 101/2014, de 2 de Julho, que procedem à alteração dos artigos 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º, 12.º, 14.º, 16.º, 18.º, 19º, 25.º, 25-A e 27.º dos Estatutos da A…………, SA”, bem como a “intimação para abstenção da prática de todo e qualquer ato e/ou comportamento que concretize o processo de privatização da A………… e/ou dê execução, direta ou indiretamente, aos atos suspendendos, nos termos da alínea f) do n.º 2 do artigo 112.º”, nos termos e pelos fundamentos insertos a fls. 01 a 59 dos autos.
1.2.
Este Supremo por acórdão datado de 20.11.2014 [cfr. fls. 542 e segs.], decidiu “declarar a jurisdição administrativa incompetente, em razão da matéria, para conhecer da providência cautelar e em absolver da instância as entidades demandadas”.
1.3.
Notificados os requerentes do referido acórdão e com ele não se conformando vieram dele interpor recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Administrativo deste Supremo apresentando alegações [cfr. fls. 558 e segs.] com o quadro conclusivo que se reproduz: “… 1. Os atos suspendendos referem-se exclusivamente aos Estatutos da A…………, sendo idênticos a outros atos que constam de outros 10 diplomas publicados no Diário da República de 2 de julho de 2014, dedicados a alterar os estatutos de concretas e individuais sociedades anónimas.
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São atos substitutivos das devidas (e impostas legalmente) deliberações sociais respetivas.
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Que interferem direta e definitivamente na gestão de pessoas coletivas de direito privado (cfr. artigos 5.º e 14.º do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro).
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Assim, em causa está o (ab)uso da função legislativa para, ainda para mais, se praticar «atos» concretos e individuais em substituição de «deliberações sociais» (forma obrigatória para a prática dos tais «atos»).
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Ao decidir como doutamente decidiu, o Acórdão sub judice olvida toda a evolução do contencioso administrativo e sua reforma de 2004, interpretando certas normas de forma claramente violadora dos princípios da tutela jurisdicional efetiva, do acesso ao Direito e aos tribunais e de outras normas com assento constitucional.
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Confunde sistema multimunicipal (público) e empresa concessionária do sistema (privada).
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A função estritamente política foi exercida no Programa do Governo e na consequente decisão do Conselho de Ministros relativamente à «privatização» do setor dos resíduos e consequente reprivatização da N………… e seu modelo, pelo que andou mal o Acórdão recorrido (páginas 5 a 7) quando alarga o seu âmbito às alterações estatutárias de uma sociedade anónima, regida pelo direito privado, a A…………, SA.
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E tal decisão política foi concretizada legislativamente depois, em vários diplomas legais, nomeadamente através do Decreto-Lei n.º 96/2014, de 25 de junho, em cujo preâmbulo se confessa que «a alienação do capital social da N………… a entidades privadas tem como consequência a alteração da natureza jurídica das atuais entidades gestoras ... (que) deixarão, assim, de ser empresas públicas ...
», e através do Decreto-Lei n.º 45/2014, de 20 de março, que define o modelo de desnacionalização da N………… (ver respetivo preâmbulo, que afasta qualquer outra interpretação ...).
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Exercida a «função primária», o Decreto-Lei n.º 101/2014, de 2 de julho veio alterar as regras e estatutos de uma concreta sociedade de direito privado, para permitir a reprivatização da N………….
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São estas alterações estatutárias, que nos termos legais deveriam ser decididas em assembleia-geral da respetiva sociedade e, portanto, adotar a forma de deliberações sociais, que são objeto dos autos.
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E é indesmentível que tais alterações decorrem do «procedimento multipolar» de reprivatização da N…………, sendo sua concretização, como aliás o legislador confessou em várias ocasiões.
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Em suma, estamos perante atos individuais e autoritários, substitutivos das deliberações sociais respetivas, pelo que, ao abrigo do princípio da irrelevância da forma dos atos administrativos (cfr. artigo 268.º, n.º 4 da CRP e 52.º, n.º 1 do CPTA), os presentes autos têm por objeto todos os atos jurídico-administrativos (materialmente administrativos) praticados pelo Conselho de Ministros e pelo Governo, precisamente através do Decreto-Lei n.º 101/2014, de 2 de julho, que se apresentam no seio do procedimento complexo e multipolar de reprivatização da N………… como atos destacáveis.
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Trata-se, pois, de atos materialmente administrativos, bastando perceber o seu conteúdo para concluir que jamais tais «atos» poderão corresponder a «normas legais», mesmo tendo presente a admissibilidade das denominadas «leis-medidas».
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Este o erro de base do Acórdão do STA, que não alcançou que os «atos» aqui em causa são concretização das decisões políticas e legislativas supra identificadas, nomeadamente do Decreto-Lei n.º 92/2013 e Decreto-Lei n.º 45/2014, tal como o próprio legislador confessou no preâmbulo do (abusivo) diploma em análise, onde refere que as alterações estatutárias «vem concretizar essas alterações (legislativas) e concluir o percurso iniciado pela Lei n.º 88-A/97, de 25 de Julho, conforme alterada, no que se refere à A…………».
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Não pode, pois, aceitar-se o Acórdão recorrido que afasta da jurisdição administrativa tais «atos», numa interpretação excessivamente formalista dos artigos identificados do Decreto-Lei n.º 101/2014, do artigo 4.º, n.º 1 alíneas b) e c) e n.º 2 alínea a) do ETAF, e do artigo 52.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA em violação, designadamente, dos artigos 111.º e 112.º, dos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, e do artigo 86.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa, bem como dos artigos 14.º, 24.º, 37.º a 39.º e 73.º do Decreto-Lei n.º 133/2013, lei de valor reforçado.
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Com todo o respeito (que é muito e sincero), são vários os erros do douto Acórdão, que põe em causa a tutela jurisdicional efetiva e plena dos outros acionistas da A………… (e das respetivas populações), sendo que tais erros não se reduzem à incorreta qualificação jurídica das alterações estatutárias de uma sociedade de direito privado, mas igualmente à fundamentação das conclusões nele vertidas.
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Em primeiro lugar, é inaceitável que se usem argumentos como a «improbabilidade»!!, competindo antes ao tribunal decidir, numa análise substantiva, quais das «normas» identificadas constituiriam ato materialmente administrativo e quais as que se excluem de tal qualificação.
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Em segundo lugar, parece haver uma certa contradição quando se invoca que o Decreto-Lei n.º 92/2013 «veio permitir a entrada de capital privado nas entidades gestoras de sistemas multimunicipais no setor dos resíduos», sendo essa a tal função primária, política e legislativa, e não a sua concretização com as alterações estatutárias em cada uma das sociedades, que não têm assim qualquer carácter inovador.
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Em terceiro lugar, haverá alguma confusão entre o ato de criação dos sistemas multimunicipais e o ato de constituição das sociedades gestoras - por decreto-lei - e a alteração dos estatutos da sociedade, que não pode seguir aquela forma, face ao regime jurídico que a rege.
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Ainda para mais quando foi o próprio legislador «constituinte» que quando criou a sociedade (in casu, através do Decreto-Lei n.º 114/96) se autoexclui da sua vida futura, ao remeter para o Código das Sociedades e, portanto, para as deliberações das assembleias-gerais as alterações estatutárias.
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E fê-lo de forma veemente e imperativa, ferindo com nulidade algumas alterações...
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Em quarto lugar, a natureza jurídica destas sociedades como de direito privado é extremamente relevante, sendo que a tese definida no Acórdão recorrido viola as leis de valor reforçado que foram regendo este tipo de sociedades anónimas do Setor Empresarial do Estado (primeiro, o Decreto-Lei n.º 260/76, depois o Decreto-Lei n.º 558/99 e, presentemente, o Decreto-Lei n.º 133/2013).
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Todos estes diplomas expressamente previam que os Estatutos das sociedades «deviam ser revistos e adaptados em conformidade», o que não sucedeu com os diplomas legais que os atos aqui em análise concretizam! 24. Ao invés, preferiu o Estado intervir diretamente e em abuso da forma legal, aprovando unilateral e autoritariamente os estatutos da A…………, através do Decreto-Lei n.º 101/2014, em substituição das necessárias e competentes deliberações sociais, o que claramente demonstra que os mesmos são decisões individuais e concretas (logo, atos administrativos substitutivos de deliberações sociais).
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Em quinto lugar, tendo o Estado limitado, ab initio, a sua função legislativa, não podem tais atos, apesar da sua forma, ser como tal qualificados, até porque os comandos em causa introduzem, antes, alterações concretas, unilaterais e...
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