Acórdão nº 02/15.2BCPRT 01386/16 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 10 de Outubro de 2018

Magistrado ResponsávelISABEL MARQUES DA SILVA
Data da Resolução10 de Outubro de 2018
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: - Relatório- 1 – O Ministério da Justiça recorre para este Supremo Tribunal Administrativo do despacho saneador do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido a 10 de Março de 2016, que julgou improcedente a excepção dilatória de incompetência material daquele Tribunal suscitada pelo Ministério da Justiça no âmbito da Acção Administrativa Especial apresentada por A…………. e Outros, Recorridos nos presentes autos, em que é discutida a inconstitucionalidade, com efeitos circunscritos ao caso concreto, das normas constantes dos artigos 5º e 9º da Portaria nº 90/2015, de 25 de Março.

Conclui a sua alegação nos seguintes termos: 1. No despacho saneador impugnado, o TCA Norte julgou improcedente a exceção dilatória da incompetência material, decisão que prejudicou o conhecimento das restantes exceções suscitadas, designadamente, i) a ilegitimidade ativa dos AA. e ii) o não preenchimento dos requisitos do mecanismo processual invocado.

  1. O despacho saneador objeto do presente recurso limita-se a transcrever anterior decisão, em providência cautelar antecedente aos presentes autos, decisão também ela objeto de recurso, interposto pelo Ministério Público.

  2. A decisão é ilegal, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 73.º do CPTA.

  3. Tal decisão interpreta e aplica de forma constitucionalmente desconforme a norma em que se baseia a sua competência pois, pela interpretação que faz do n.º 2 do artigo 73.º do CPTA, cria uma competência de avaliação abstrata da constitucionalidade das normas i) sediada nos tribunais administrativos, e não no Tribunal Constitucional, único com competência constitucional para o efeito, e ii) na disponibilidade de qualquer requerente, em clara violação da disposição constitucional que delimita os sujeitos ativos do pedido às entidades enumeradas no n.º 2 do seu artigo 281.º.

  4. A doutrina citada pelo despacho anterior (e reproduzida no que ora se impugna) é anterior à actual redação do n.º 2 do artigo 73.º do CPTA, redação em que se louva o despacho impugnado. Em qualquer caso, a doutrina em que se apoia o despacho impugnado não tem aplicação ao caso sub judice.

  5. De facto, como bem resulta do excerto citado, a posição de Mário Esteves de Oliveira/Rodrigo Esteves de Oliveira supõe que “(…) não havendo (…) um acto administrativo de aplicação que se possa impugnar, nem tendo os interessados (…) acesso ao Tribunal Constitucional (…)”; ora, no caso dos autos há um ato administrativo de aplicação, que os AA., porém, entendem não ter que impugnar.

  6. A posição de Mário Aroso de Almeida e Carlos A. Fernandes Cadilha entronca, por seu lado, num juízo judicial de “desaplicação de uma norma num caso concreto” e, neste caso, não foi identificado qualquer caso concreto a que a norma tivesse sido aplicada e cuja desaplicação passasse agora por um juízo de inconstitucionalidade.

  7. Em suma, a questão não se encontra na determinação dos efeitos da decisão judicial – em geral ou restrita ao caso concreto – mas na inexistência do prévio pressuposto para que possa o tribunal desaplicar uma norma com base na sua inconstitucionalidade, ainda que com efeitos limitados – a existência de um caso concreto.

  8. O Recorrente não nega a possibilidade de, em juízo de fiscalização concreta da constitucionalidade, com efeito circunscritos ao caso concreto, o tribunal administrativo desaplicar uma norma inconstitucional – fiscalização sucessiva e concreta da constitucionalidade; mas esse não é o caso dos autos.

  9. Como refere Jorge Miranda, “A fiscalização concreta pressupõe três poderes: o de determinar a norma aplicável ao caso, o de apreciar a sua conformidade com a constituição e, como consequência, o de não a aplicar quando desconforme”.

  10. Tal doutrina, unanimemente aceite, mostra, à saciedade, o que falta ao caso dos autos: um caso concreto, em que o juiz tenha que determinar uma norma ao mesmo aplicável. Só após, há que determinar se tal norma é inconstitucional e, se assim for, não a aplicar ao caso.

  11. Neste caso, o que é pedido ao tribunal é um juízo “circunscrito à questão da inconstitucionalidade” 13. Se o tribunal viesse a considerar inconstitucionais as normas em causa (uma competência que só por aplicação analógica do disposto na alínea c) do artigo 38.º do ETAF e do artigo 72.º do CPTA poderia reivindicar), tal juízo seria uma decisão de não aplicação da norma, dissociado de qualquer outra sobre a norma possivelmente aplicada ao caso, simplesmente porque não há um caso a que aplica-la, na tal “dissociação” que só pode ocorrer na intervenção do Tribunal Constitucional.

  12. Como bem salientam Licínio Lopes Martins e Jorge Alves Correia, a propósito da apreciação do n.º 2 do artigo 73.º do CPTA, “nunca devera negligenciar-se que se trata de uma declaração de ilegalidade com fundamento na inconstitucionalidade da norma regulamentar que tem sempre por mediação judicativa o caso concreto, tal como sucede na desaplicação por via incidental” 15. Como consta das alegações do Ministério Público em recurso na providência cautelar, com igual fundamento, “em momento algum os Requerentes invocam um qualquer caso concreto em que deva ser declarada a ilegalidade dos art’s 5º e 9º da Portaria, ainda que com base na sua alegada inconstitucionalidade. Pelo contrário, os Requerentes reconhecem que a apresentação da presente providência, e correspondente acção administrativa especial, nos termos em que o foi, ou seja, sem a referência a um único caso concreto, se ficou a dever, não a impossibilidade de formular um pedido em devida observância do disposto no artº 73º nº 2 do CPTA, mas por mera conveniência e benefício próprio, em virtude da dificuldade logística que, a seu ver, o respeito por este artigo imporia.

    Os Requerentes chegam mesmo a afirmar a possibilidade de por eles ser apresentada uma pretensão por referência a um caso concreto, mas que, deliberadamente, escolheram não fazê-lo, em contradição expressa com os termos do artº 73 nº 2 e em violação do artº 281º da CRP”.

  13. Só numa possível aplicação/desaplicação de norma considerada inconstitucional a um litígio/caso concreto pode fazer sentido a limitação dos efeitos de tal aplicação/desaplicação ao caso concreto, apanágio da fiscalização concreta atribuída aos tribunais comuns.

  14. Os AA. e a despacho confundem “caso concreto” com “situação pessoal dos AA.” ou com simples “ação judicial”.

  15. O Tribunal administrativo, como qualquer tribunal têm competência e o poder-dever, de não aplicar, ou desaplicar, norma inconstitucional a um caso concreto, ou seja, a uma situação da vida concretamente delimitada, subjectiva e objectivamente, de onde deriva um litígio, cuja resolução é pedida a um juiz; a desaplicação de tal norma tem apenas efeitos em tal caso concreto, i.e., para o caso em litígio.

  16. Ora, os AA. não pediram desaplicação dos artigos 5.º e 9.º da Portaria n.º 90/2015, de 25 de março a nenhum litígio judicial, para cuja resolução se mostrasse necessário invocar – para aplicar ou desaplicar – as normas em causa.

  17. São os AA. que bem demonstram que a presente ação se mostra dissociada de qualquer litígio concreto, não necessitando de o estar.

  18. A questão colocada ao tribunal foi no sentido de evitar que uma suposta “alteração danosa da esfera dos Requerentes” se produzisse para futuro, dispensando os requerentes de terem de interpor “as competentes reclamações graciosas e impugnações judiciais contra as liquidações da TAFDAJ, dentro dos respetivos prazos”.

  19. Há que não confundir caso concreto – que poderiam ser todos aqueles em que tivesse aplicação a norma impugnada – e, portanto, até agora, cada um dos de aplicação do artigo 5.º da Portaria n.º 90/2015, mas nenhum de aplicação do seu artigo 9.º – com a situação geral (não o caso) de imposição de uma contribuição financeira (que, de facto, decorre da norma que os AA. pretendem não possa vir a ser aplicada de futuro, por via de um juízo abstracto de constitucionalidade).

  20. Como não resultam quaisquer dúvidas sobre os vícios imputados às normas em causa – inconstitucionalidade –, aquilo a que se assiste nestes autos é a um pedido de declaração de inconstitucionalidade de duas normas, em abstracto, ou seja sem aplicação a qualquer caso concreto em litígio, ainda que tal declaração só pudesse ver os seus efeitos limitados aos A.A., ou seja, sem ter força obrigatória geral.

  21. A decisão ora recorrida, ao arrepio da CRP e da jurisprudência, do próprio TCA Norte, declarou-se competente para conhecer sobre a fiscalização abstracta da constitucionalidade de normas.

  22. Assim se tendo inventado uma terceira modalidade de declaração de inconstitucionalidade por fiscalização sucessiva: nem abstrata, por não ter os efeitos desta, nem concreta, por não ter subjacente um caso concreto.

  23. Tal decisão contraria jurisprudência firmada, designadamente deste Supremo Tribunal.

  24. A interpretação feita pelo tribunal do disposto no n.º 2 do artigo 73.º do CPTA, e da norma da alínea c) do artigo 38.º do ETAF é, em si mesma, inconstitucional.

  25. A primeira norma (artigo 73.º, n.º 2, do CPTA) é inconstitucional quando interpretada no sentido de que atribui competência aos Tribunais Administrativos para, a título principal e definitivo, declarar a inconstitucionalidade e ilegalidade qualificada de normas regulamentares, ainda que com efeitos restritos ao caso concreto.

  26. A segunda norma (artigo 38.º, c), do ETAF) é inconstitucional quando interpretada analogicamente no sentido de atribuir competência à Secção de Contencioso Tributário de cada um dos Tribunais Centrais Administrativos para conhecer “Dos pedidos de declaração de [inconstitucionalidade] de normas administrativas de âmbito nacional, emitidas em matéria fiscal;” 30. Conforme referem Licínio Lopes Martins e Jorge Alves Correia, “se a invalidade das normas regulamentares tiver por fundamento (direto) a (sua) desconformidade com a Constituição, é forçoso concluir que esta desconformidade –...

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