Acórdão nº 02762/17.7BELSB de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 16 de Maio de 2019
Magistrado Responsável | MARIA BENEDITA URBANO |
Data da Resolução | 16 de Maio de 2019 |
Emissor | Supremo Tribunal Administrativo (Portugal) |
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: I – Relatório 1.
A…………, devidamente identificado nos autos, recorre para este Supremo Tribunal do Acórdão do TCAS, de 22.11.18, em que se acordou: “I – Determinar a eliminação do facto n.º 11, dado como provado na decisão recorrida, e no demais negar provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência, manter a decisão recorrida”.
Na base deste recurso está uma acção de intimação para protecção de direitos, liberdades intentada no TAC de Lisboa, em que se peticiona, a final, “a intimação do R. INR para que emita imediatamente o cartão do cidadão do A., remetendo-o com urgência ao Consulado Geral de Portugal em Goa”; e, ainda, a intimação do “2.º R. para que ordene ao Consulado Geral de Portugal em Goa qu proceda à entrega com urgência do cartão, após boa receção do mesmo por parte do 1.º R.”.
2.
Por acórdão de 24.01.19 veio o TCAS pronunciar-se sobre a nulidade arguida pelo ora recorrente, dando-a como não verificada.
3.
Inconformado com a decisão do TCAS, o A. interpôs o presente recurso jurisdicional de revista, tendo, para o efeito apresentado alegações, que concluíram do seguinte modo (cfr. fls. …): “I. A fundamentação utilizada pelo Tribunal a quo, nomeadamente quanto ao preenchimento do critério de urgência exigido como pressuposto de admissibilidade de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias – particularmente se a urgência é afastada pela circunstância da ação judicial ter sido intentada antes do termo do prazo para emissão do cartão de cidadão – é uma questão controversa que extravasa o presente processo, sobre a qual não existe jurisprudência consolidada no nosso ordenamento jurídico E, salvo melhor opinião, a conclusão alcançada pelo Tribunal a quo torna a admissão do presente recurso claramente necessário para uma melhor aplicação do direito, preenchendo assim o requisito de admissibilidade previsto no art. 150º, nº 1 in fine do CPTA.
-
A ofensa dos direitos fundamentais em causa, a gravidade das consequências potenciais para o recorrente, e a circunstância de tal situação afetar muitos outros cidadãos portugueses – sendo previsível que tais ofensas continuem a ocorrer – justificam a atribuição e relevância jurídica e social à apreciação do presente recurso, impondo-se ao Supremo Tribunal Administrativo a pronúncia sobre esta matéria, nos termos do disposto no art. 150º, nº 1, 1ª parte do CPTA.
-
Tendo o Tribunal a quo considerado que “Assim sendo, a parte decisória da sentença recorrida [onde se determina a absolvição das entidades requeridas do pedido] não apresenta uma formulação correcta [pois os dois primeiros fundamentos acima descritos – os quais implicam na absolvição da instância – têm prevalência sobre o terceiro fundamento (por força do disposto no citado art. 89º, n.º 2, do CPTA), razão pela qual este último tem se se entendido como invocado a título subsidiário], antes se devendo entender que a mesma se traduziu numa absolvição dos recorridos da instância.”, não podia ter decidido “(…) no demais negar provimento ao recurso jurisdicional e, em consequência, manter a decisão recorrida.” IV. Ao ter identificado e apontado um erro de julgamento à sentença proferida em primeira instância, optando, no entanto, por manter tal decisão, para além de confirmar e validar um erro de julgamento, o Tribunal a quo incorreu em manifesta contradição entre a fundamentação e a decisão, ferindo de nulidade o acórdão ora em crise nos termos do art. 615º, n.º 1, al. c) do CPC, aplicável ex vi art. 1º do CPTA.
-
A decisão recorrida é igualmente contraditória nos seus próprios termos, nomeadamente no que toca à aferição do preenchimento do requisito processual de urgência, necessário para o deferimento de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.
-
Para além das falhas de mérito que resultam de tal fundamentação e da posição assumida pelo Tribunal a quo – que infra se aprofundarão – certo é que tal contraposição argumentativa denota uma manifesta contradição lógica entre si mesma: não podia o Tribunal a quo ter julgado não verificada a urgência para o recurso à presente intimação por o recorrente ter agido demasiado tarde e, simultaneamente, demasiado cedo.
-
Nestes termos não poderá deixar de ser considerado que o acórdão recorrido é contraditório nos seus próprios termos, estando ferido de nulidade nos termos do art. 615º, n.º 1, al. c) do CPC, aplicável ex vi art. 1º do CPTA.
-
O direito à identidade pessoal é um direito fundamental, de que o recorrente é titular, como qualquer outro cidadão português (art. 26º, nº 1 e art. 13º, nº 2 da Constituição da República), bem como o direito à liberdade e segurança é, igualmente um direito fundamental inerente a qualquer ser humano. Assim, é inegável que o recorrente tem o direito de exigir que o Estado emita na sua titularidade um cartão de cidadão, que lhe garanta a identidade pessoal e um passaporte que lhe permita identificar-se, regularizar a sua permanência num Estado estrangeiro e viajar sem limitações.
-
A nacionalidade do recorrente encontra-se provada e consta da matéria de facto assente (cfr. ponto 1 da matéria de facto assente, i.e.
“O Requerente é cidadão português, conforme Assento de Nascimento nº ……………, de 1.7.2016 da Conservatória dos Registos Centrais (…)”).
-
A concretização do direito à identidade pessoal, constitucionalmente garantido, passa, na generalidade dos Estados, pela emissão de um documento que prova a identidade dos seus nacionais. Portugal não foge a essa regra, e tal resulta cristalino do disposto no art. 4º da Lei do Cartão de Cidadão. Negar ao recorrente o documento que prova a sua identidade é, na prática, negar-lhe o seu direito à identidade.
-
Mais grave ainda, sendo o recorrente um cidadão estrangeiro na República da Índia, a sua liberdade e segurança estão em risco pois, tal como em Portugal, também na República da Índia os estrangeiros carecem de título de residência, algo que o mesmo se encontra impedido de obter por não tem os documentos portugueses necessários para o efeito.
-
A jurisprudência tem seguido este entendimento, considerando que a recusa de emissão ou entrega do cartão do cidadão constitui fundamento suficiente para impor o decretamento de uma intimação judicial para a proteção de direitos, liberdades e garantias.
5 [5 Entre outras, as sentenças prolatadas no processo nº 1877/12.2BELSB da 3ª Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa e processo nº 2239/10.1BELSB da 2ª Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 16/04/2015, tirado no processo nº 12003/2015].
-
Ao impedir o recorrente de obter o seu cartão de cidadão, para além de ser coartado inadmissivelmente um direito fundamental do recorrente, o mesmo fica impedido de cumprir uma obrigação que lhe é legalmente imposta como cidadão português. E tal impedimento, não tendo base legal que o justifique – e nem a realidade dos factos assim o obriga – foi manifestamente ilícito. Nestes termos, encontravam-se plenamente verificados os pressupostos para o deferimento da proteção de direito, liberdade ou garantia, ou direito análogo e a ilicitude da conduta da administração.
-
Seguindo o raciocínio trilhado pelo Tribunal a quo, dir-se-ia que o recorrente foi simultaneamente demasiado passivo e demasiado atuante. Certo é que, segundo Tribunal a quo, tanto uma como outra circunstância denotam falta de urgência na emissão de uma decisão de mérito. Tal interpretação, com o devido respeito e salvo melhor opinião, fere o mais ignoto senso comum e consciência jurídica.
-
O recorrente efetuou o seu pedido de cartão de cidadão junto do Consulado Geral de Portugal em Goa onde, quer o dia 01/12 quer o dia 08/12, não são feriado. Isto porque, nos termos do disposto no art. 17º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 47/2013, os únicos feriados que são obrigatoriamente observados pelos serviços periféricos do Ministério dos Negócios Estrangeiros – como é caso do Consulado Geral de Portugal em Goa – são os de 25 de abril, 10 de junho e 25 de dezembro. Desse modo, quando o recorrente intentou a presente intimação, já haviam decorrido os sete dias úteis de prazo para a decisão da administração.
-
Mas, mesmo que assim não se entendesse, jamais poderia ter sido afastado o requisito de urgência de uma decisão de mérito, pelo simples facto da intimação ter sido apresentada em juízo antes do termo de tal prazo. O facto – que não se reconhece, mas que se pondera por mero dever de patrocínio – de o recorrente ter intimado os RR. a emitir e entregar o seu cartão de cidadão um dia antes do prazo para que estes tinham para o fazer seria, quanto muito, revelador de extrema urgência.
-
Como tem sido frequentemente decidido pela jurisprudência, a situação de urgência que justifica o recurso a uma intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias mede se perante factos da vida real que reclamem a decisão imediata do pedido. E esses factos da vida real eram, no caso do recorrente, claramente justificadores do recurso a um meio processual urgente, que lhe permitisse obter uma decisão de mérito definitiva, num curto espaço de tempo.
-
Conforme foi alegado pelo recorrente em sede da petição inicial – e, bem assim, alegado igualmente perante o Tribunal a quo em sede de recurso – da situação concreta do recorrente resultavam vários factos concretos, determinados e pertencentes à vida real que consubstanciam uma situação de manifesta urgência e que legitimavam o recurso à tutela urgente das intimações para proteção de direitos, liberdades e garantias.
-
A concreta situação do recorrente, medida através de factos da vida real, determina a urgência que o mesmo tem em obter uma decisão de mérito, que lhe permita obter o seu cartão de cidadão e, assim, regularizar a sua residência em território da República da Índia.
-
A mera circunstância de a...
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO