Acórdão nº 01701/10.0BEBRG 0200/18 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 18 de Junho de 2020

Magistrado ResponsávelCARLOS CARVALHO
Data da Resolução18 de Junho de 2020
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: RELATÓRIO 1.

MINISTÉRIO pÚBLICO [doravante MP] instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga [doravante TAF/B] a presente ação administrativa especial contra «MUNICÍPIO DE FELGUEIRAS» [doravante R.] e contrainteressados A………., B………… e C……….

, peticionando, pelas razões insertas na petição inicial de fls. 01/08 dos autos [paginação «SITAF» tal como as ulteriores referências à mesma, salvo expressa indicação em contrário], a declaração de nulidade dos despachos: i) de 03.07.2000, da Presidente da Câmara Municipal de Felgueiras, que deferiu o pedido de informação prévia no processo n.º 06/2000; ii) de 11.11.2004, do Vereador da Câmara Municipal de Felgueiras, que deferiu o licenciamento do loteamento requerido no processo n.º 1112/04; e iii) de 25.01.2005, do mesmo Vereador, que autorizou a emissão do alvará de loteamento n.º 01/05.

  1. O TAF/B por decisão de 21.04.2014 [cfr. fls. 109/112], em sede de saneamento processual julgou procedente a exceção suscitada pelo R. de inimpugnabilidade do despacho de 25.01.2005, e após ulteriores termos veio a proferir sentença, datada de 25.10.2016, a julgar improcedente a presente ação «por verificada a exceção perentória da atribuição de efeitos putativos à nulidade declarada» [cfr. fls. 191/207].

  2. O MP, inconformado recorreu para o Tribunal Central Administrativo Norte [doravante TCA/N], o qual, por acórdão de 03.11.2017 [cfr. fls. 269/293], tendo concedido provimento ao recurso, revogou a sentença recorrida e declarou a nulidade dos atos impugnados na ação [os referidos despachos datados de 03.07.2000 e de 11.11.2004].

  3. Invocando o disposto no art. 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos [CPTA] [na redação anterior à alteração introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 02.10 (cfr. art. 15.º, n.ºs 1 e 2, do referido DL) - redação a que se reportarão todas as ulteriores referências àquele Código sem expressa indicação em contrário], os contrainteressados, agora inconformados com o acórdão proferido pelo TCA/N, interpuseram, então, o presente recurso jurisdicional de revista [cfr. fls. 300/323], apresentando o seguinte quadro conclusivo que se reproduz: «...

    Quarta: No douto acórdão recorrido, o TCAN ao contrário do TAF de Braga, foi do entendimento que não se gerou no plano dos factos uma situação em que os contrainteressados mereçam tutela, considerando que o tempo decorrido à sombra dos licenciamentos de construção que antes ocorreram (n.ºs 233/90, 234/90 e 235/90), não contava, nem se avistava “uma confiança legítima dos beneficiários desses licenciamentos que pudesse perspetivá-los em termos de proporcionarem uma divisão jurídica do prédio à revelia do crivo administrativo pelo respetivo procedimento de loteamento”.

    Quinta: Porém, e com todo o respeito, que muito é, o douto acórdão recorrido padece de erro de interpretação e aplicação da lei substantiva.

    Sexta: Com efeito, desde há muito tempo que a doutrina vem tecendo amplas críticas ao severo regime previsto para a nulidade dos atos administrativos que não responde em termos adequados à realidade dos tempos de hoje em que se impõe a consideração das relações jurídicas estabelecidas pelos atos administrativos (neste sentido, José Carlos Vieira de Andrade, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 138, n.º 3957, julho/agosto 2009, p. 341).

    Sétima: Assim, tendo em vista a necessidade de colmatar situações de injustiça derivadas da aplicação estrita do princípio da legalidade e da “absolutidade” (Rebelo de Sousa, revista de Direito e Justiça, Vol. VI 1992, pág. 48), o Código de Procedimento Administrativo consagrou no artigo 134.º, n.º 3, que a nulidade do ato administrativo “não prejudica a possibilidade da atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, por força do simples decurso do tempo de harmonia com os princípios gerais de direito”.

    Oitava: Em termos semelhantes o atual Código de Procedimento Administrativo (na redação do Dec. Lei n.º 4/2015, de 7/01) prevê no artigo 162.º, n.º 3, que o regime da nulidade “não prejudica a possibilidade da atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, de harmonia com os princípios da boa-fé, da proteção da confiança e da proporcionalidade ou outros princípios jurídicos constitucionais, designadamente associados ao decurso do tempo”.

    Nona: Assim, em comparação com o anterior CPA que já consagrava esta possibilidade no artigo 134.º, n.º 3, o vigente artigo 162.º, n.º 3 amplia o âmbito de aplicação da possibilidade de produção dos efeitos putativos do ato, ao deixar de depender tanto do factor tempo para passar a decorrer mais da aplicação de princípios de direito.

    Décima: Também a jurisprudência tem sido sensível à severidade das consequências jurídicas do regime da nulidade, sendo do entendimento que o julgador deverá temperar a sua aplicação, pontualmente, fazendo-o em nome de princípios como os da proporcionalidade e da necessidade, porque a atuação administrativa nula não pode justificar injustiças ou iniquidades (Acórdão do TCAN de 13/01/2011 (proc. n.º 69/06.4BECBR).

    Décima primeira: São pressupostos para a aplicação do regime da jurisdicização dos efeitos de atos nulos, a existência de um ato administrativo nulo, o decurso do tempo e a sua compatibilidade com os princípios gerais de direito, nos termos dos quais o interesse na manutenção dos efeitos produzidos pelo ato nulo deve ser suportado por princípios jurídicos gerais como o princípio de boa-fé, da justiça, da proteção da confiança, da paz social, da igualdade, mas também da realização do interesse público ou da proporcionalidade.

    Décima segunda: Quanto ao primeiro pressuposto, existência de um ato administrativo nulo, os despachos impugnados ao permitirem a constituição de lotes com área inferior a 500 m2, são nulos por violação do PDM (artigo 56.º, n.º 1, alínea b) do DL 448/91 e artigo 68.º, alínea a) do RJUE).

    Décima terceira: Quanto ao segundo pressuposto, decurso do tempo, importa “saber se o tempo decorrido foi suficiente para que a situação de facto se consolidasse (…) e o tempo decorrido entre o momento da emissão do ato e aquele que os seus efeitos se esgotam e se consolidam é suficiente para se dar por verificado o requisito do decurso do tempo como fator de tutela jurídica” (Pedro GONÇALVES e Fernanda Paula OLIVEIRA, in obra citada, pág. 26).

    Décima quarta: Ora, é manifesto que o decurso do tempo foi suficiente para a consolidação da situação de facto, considerando que a ação foi instaurada 19 anos e 5 meses depois de terem sido emitidos os alvarás de licença de construção das três habitações, tipo moradia unifamiliar e do terreno ter ficado dividido em lotes no plano dos factos, tendo o douto acórdão recorrido sido proferido 26 anos e 6 meses depois da emissão desses alvarás, 17 anos e 4 meses depois do ato que deferiu o pedido de informação prévia e 13 anos e 2 meses depois do ato que deferiu o licenciamento do loteamento.

    Décima quinta: Também a aplicação dos princípios gerais de direito impõem a jurisdicização da situação de facto decorrente dos atos impugnados.

    Décima sexta: Com efeito, em 1991, o Município de Felgueiras licenciou as três moradias unifamiliares, de rés-do-chão e andar, dos contrainteressados, destinadas a habitação (licenças n.º 233/90, 234/90 e 235/90), construídas de acordo com as regras legais aplicáveis à data, pelo que não se coloca, nem nunca se colocou ao longo deste processo, a validade dos atos administrativos que autorizaram a construção destas moradias, nem tão pouco dos alvarás de licença de construção a seguir emitidos, nem ainda das licenças de utilização emitidas em 2000 (licenças de utilização n.º 374/2000, 381/2000 e 382/2000).

    Décima sétima: À data em que as habitações foram licenciadas e o prédio foi dividido em lotes, no plano dos factos, não existia PDM em Felgueiras e, portanto, não era ainda vigente a norma do PDM que impunha a área mínima de 500 m2 do lote a constituir e as obras de infraestruturas dos arruamentos foram devidamente realizadas, como resulta do probatório, pelo que não são imputáveis aos contrainteressados, que sempre estiveram de boa-fé, os vícios determinantes da nulidade dos atos impugnados, sendo a Administração a única responsável.

    Décima oitava: Tratam-se, assim, de três edificações que respeitaram os trâmites legais aplicáveis à data em que foram construídas e que, por isso, investidos de confiança em tais atos de licenciamento, os contrainteressados estabeleceram o seu quotidiano naquelas edificações aí instalando as suas habitações permanentes e nelas vivem com os seus agregados familiares, aí residem, fazem as suas refeições, pernoitam, enfim, utilizam-nas para o seu dia a dia, o que se verifica desde 1991 até hoje, agindo com base na confiança que legitimamente depositaram nos atos praticados e na entidade pública que os praticou.

    Décima nona: Assim, o Município de Felgueiras ao não só licenciar as habitações dos contrainteressados como vindo posteriormente a aprovar o pedido de informação prévia de 3/07/2000 e o ato de licenciamento do loteamento de 11/11/2004, reforçou neles a confiança, justificada por elementos objetivos idóneos, a produzir uma crença plausível de que o loteamento era legal e, por isso, passível de licenciamento.

    Vigésima: Ou seja, foram produzidos sinais pela Administração suficientemente concludentes para um destinatário normal e onde lhes permitiram com razoabilidade ancorar confiança.

    Vigésima primeira: Ora, a boa-fé e a confiança legítima depositada pelos contrainteressados nos atos praticados pelo Município de Felgueiras, têm de ser tuteladas, por aplicação do princípio da boa-fé e da proteção da confiança que é uma decorrência do princípio da segurança jurídica, imanente ao Estado de Direito, já que o princípio do Estado de Direito Democrático garante seguramente um mínimo de certeza nos direitos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT