Acórdão nº 02886/17.0BEPRT de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 15 de Outubro de 2020

Magistrado ResponsávelSUZANA TAVARES DA SILVA
Data da Resolução15 de Outubro de 2020
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam na secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: I – Relatório 1 – A………… interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte que, em 15 de Março de 2019, concedeu parcial provimento ao recurso da sentença proferida no TAF do Porto, a qual julgou totalmente improcedente a acção administrativa especial intentada pela Espaço Municipal Renovação Urbana e Gestão de Património, E.E.M. S.A., em representação do Município da Maia, para reconhecer que a fracção sita à Rua ………, n.º ……, Apartamento ……, designada por fracção ……, …… e ……, é propriedade do Município da Maia, bem como proceder à sua restituição à Autora livre de pessoas e bens e, ainda, ao pagamento de uma indemnização pela ocupação indevida em quantia mensal de €250,00, desde a citação até efectiva entrega do locado, e em sanção pecuniária compulsória a arbitrar no montante de €50,00 diários, por cada dia de mora até à efectiva entrega, tudo com custas, condigna procuradoria e no mais que for legal a seu cargo.

2 – Por acórdão de 14 de Outubro de 2019, foi a presente revista admitida para analisar “o acerto do julgamento do TCAN que, revogando a decisão do TAF, deferiu, no essencial, o peticionado na acção e condenou a Ré a restituir à Autora, livre de pessoas e bens, o imóvel que esta não só arrendou como prometeu vender às pessoas de quem a Ré e herdeira”.

3 – A Ré, e aqui Recorrente, apresentou alegações que concluiu da seguinte forma: «[…] 1. O presente recurso tem por objecto o Acórdão, datado de 15/03/2019, que revogou a decisão recorrida do Tribunal Administrativo Central Norte [sic] e julgou a acção parcialmente procedente, condenando a Ré a restituir o locado livre de pessoas e bens e em indemnização que vier a ser liquidada, absolvendo-a do demais.

  1. Decidiu, assim, o Tribunal ad quem em sentido diverso do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.

  2. A, ora, Recorrida vem a juízo peticionar que seja reconhecido que o imóvel em causa é propriedade do Município da Maia e que a, aqui, Recorrente restitua o locado livre de pessoas e bens, pedindo ainda a condenação desta no pagamento de uma indemnização pela ocupação indevida “em quantia mensal de€ 250,00, desde a citação até efectiva entrega do locado, bem como lhe deve ser fixada uma sanção pecuniária compulsória a arbitrar no montante de € 50,00 diários, por cada dia de mora”.

  3. Em sede de contestação, a ora Recorrente invocou como factos modificativos e que impedem o efeito jurídico pretendido pela aqui Recorrida, as negociações prévias, que culminaram na celebração do contrato de arrendamento com promessa de compra e venda, bem como no pontual e integral cumprimento do deste.

  4. Ainda que a cláusula 8.2.2. do contrato, conjugada com a cláusula 14.1., não manifeste a obrigatoriedade de os sucessores da arrendatária-promitente sucederem em todos os direitos e deveres emergentes do contrato, esta mesma não menciona, em momento algum, a aplicação do Regulamento Municipal, e o inerente cumprimento deste como uma obrigação dos sucessores da arrendatária-promitente.

  5. O Tribunal, em 1.ª instância, proferiu sentença e decidiu que a cláusula 8.2.

    2 “derroga o artigo 20.º do Regulamento de Atribuição e Gestão de Habitação Pública”, concluindo que “existindo este tipo de disposição contratual e inexistindo qualquer obstáculo legal expresso à mesma, esta derrogará a disposição legal geral, pelo que não se coloca a questão de a Ré - aqui, Recorrente - ter ou não ter direito à transmissão do arrendamento, nos termos da alínea b) do artigo 1106º do RAU.

  6. Ou seja, é irrelevante saber se residia em economia comum e há mais de um ano com qualquer uma (ou ambas) as falecidas”, as Segundas Outorgantes no contrato de arrendamento com promessa de compra e venda, pelo que “a Ré sucederá às contraentes/ Segundas Outorgantes, na qualidade de herdeira, na respectiva posição contratual, em todos os seus direitos e deveres emergentes do contrato, então, celebrado”.

  7. Inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância a, ora, Recorrida interpôs recurso, tendo decidido o Tribunal Central Administrativo Norte pelo seu parcial provimento, “assim revogando a decisão recorrida e julgando a acção parcialmente procedente, condenando a Ré a restituir o locado livre de pessoas e bens e na indemnização que vier a ser liquidada, absolvendo-a do mais”.

  8. Com o devido respeito, erradamente andou o Tribunal Central, existindo, na apreciação do caso sub judice, um erro grosseiro e juridicamente insustentável.

  9. Porquanto o Tribunal a quo, com a sua decisão, viola a lei substantiva ao aplicar erradamente um regime geral, quando in hoc casu existe uma cláusula que concretamente especifica uma situação, o que tem como consequência a derrogação do diploma legal.

  10. Destarte, no caso sub judice foi celebrado um contrato de arrendamento com promessa de compra e venda, a 01/09/2001. Este contrato teve origem na actuação da Câmara Municipal da Maia, que teve de realojar os residentes do Bairro …………, tendo ficado as Segundas Outorgantes do referido contrato a residir na Rua ………….

  11. Em consequência, o contrato foi alvo de negociações duradouras, nas quais a Câmara Municipal da Maia participou.

  12. Da análise das negociações, na fase pré-contratual, facilmente se percebe que o meio utilizado - o contrato de arrendamento com promessa de compra e venda - era o único possível para acautelar os interesses dos arrendatários/proprietários, do mesmo modo que acautelou os interesses da Câmara Municipal.

  13. O Acórdão recorrido defende que “releva o sentido que um declaratório normal, colocado na posição do declaratório real e conhecendo as circunstâncias que este concretamente conhecia, atribuiria à declaração, agindo com capacidade e diligência médias". E conclui, explicando que "esse sentido não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência no texto do documento”.

  14. Ora, do que fora anteriormente explicitado e do que se explicitará, depreende-se que não houve qualquer deficiência/ vício nas declarações que foram prestadas, nem na interpretação que fora dada pelo receptor dessas, porquanto as mesmas culminaram na celebração do contrato, das quais resultou o texto do contrato de arrendamento com promessa de compra e venda celebrado.

  15. Concretizando, então, e para que dúvidas não haja, houve três versões do contrato.

  16. Na sua 1.ª versão, redigida pela Câmara Municipal, o contrato não contemplava as pretensões das Segundas Outorgantes, designadamente a cláusula 8.2.2. constante do contrato celebrado - este motivo levou a que este contrato não tivesse sido celebrado.

  17. Por sua vez, na 2.ª versão incluíram-se as cláusulas de transmissão do direito à celebração da escritura de compra e venda aos herdeiros. No entanto, esta ainda não previa todas as exigências das partes.

  18. Por conseguinte, foi apenas e tão-só assinada a 3.ª versão do contrato, por ser essa a que correspondia na íntegra à vontade de ambas as partes.

  19. Salienta-se, deste modo, que o contrato assinado e celebrado corresponde, no seu todo, à vontade dos seus outorgantes.

  20. Significa isto que se os contraentes pretendessem que o Regulamento Municipal se aplicasse à situação da transmissão mortis causa, tal estaria especificamente previsto no contrato, ou seja, o Regulamento Municipal teria aplicação directa e seria sua parte integrante.

  21. Ora, as partes não acordaram na aplicação do Regulamento nessa cláusula, e atendendo às negociações que a antecederam, não pode, nem deve a Recorrida, ulteriormente, agir como se as mesmas não existissem, e modificar o seu teor e alcance, 23. Sendo que o Acórdão recorrido defende precisamente esta ideia na sua interpretação do contrato.

  22. Contudo, não é aceitável que a Recorrida altere unilateralmente a interpretação do contrato e que faça uma aplicação dele diversa do seu conteúdo e, consequentemente, pretenda alterar o teor do mesmo como se desconhecesse a sua génese, a interpretação dada pelas partes e o âmbito de aplicação pretendido por estas, violando, assim, o disposto nos artigos 405.º e 406.º do CC.

  23. Ora, tal interpretação e aplicação das referidas disposições legais, efectuadas pelo Tribunal a quo, colocam em causa a constitucionalidade dessas normas, por violar os princípios basilares do Estado de Direito Democrático, nomeadamente o princípio da segurança, confiança e estabilidade da ordem jurídica, consagrados nos artigos 2.º, 62.º e 65.º da Constituição da República Portuguesa.

  24. Frisa-se, contrariamente ao que o Acórdão recorrido decide, que o importante é o sentido da declaração negocial firmado no momento em que o contrato foi celebrado e, nesse momento, este não poderia derrogar o Regulamento Municipal de 2014, por este não existir.

  25. Nada impedindo que o contrato derrogasse o Regulamento Municipal para Atribuição de Habitações de Custos Controlados em Empreendimentos a tal fim destinados, datado de 1992.

  26. Em causa está, pois, o princípio pacta sunt servanda que, in hoc casu, não está a ser respeitado pela Recorrida, que não se encontra a cumprir com as obrigações contratualmente assumidas, nomeadamente as previstas na cláusula 13.1.b) e c), que dispõe que são obrigações da Câmara Municipal da Maia “assegurar ao locatário o gozo do imóvel para o fim - contratualmente fixado na cláusula 2 do contrato - a que se destina” e “celebrar, na data prevista1 o contrato de compra e venda do imóvel locado”.

  27. Estando a Recorrente apenas a cumprir o contrato celebrado - o contrato de arrendamento com promessa de compra e venda, que se encontra ainda dentro do seu período de vigência de 25 anos, antes da realização da escritura prevista na cláusula 10.ª.

  28. Situação diferente é a da Recorrida, que incumpre o contrato por si celebrado e que vê a sua fundamentação acolhida pelo Acórdão recorrido.

    Senão vejamos, 31. O contrato pode ter sido celebrado no âmbito do Regulamento Municipal, mas não foi acordado, no seu todo, o...

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