Acórdão nº 0122/20.1BALSB de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 31 de Outubro de 2020
Magistrado Responsável | MARIA DO CÉU NEVES |
Data da Resolução | 31 de Outubro de 2020 |
Emissor | Supremo Tribunal Administrativo (Portugal) |
ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO: 1. RELATÓRIO A…………, devidamente identificada nos autos, intentou neste Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do disposto no artº 109º e segs. do CPTA, intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias contra o ESTADO PORTUGUÊS e a PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS formulando os seguintes pedidos: “Ser o Estado Português intimado a respeitar o direito fundamental da requerente à livre circulação e locomoção no território nacional no período compreendido entre as 00,00h do dia 30.10.2020 e as 06,00h do dia 03.11.2020 e, em consequência, o requerido abster-se de qualquer acto que, por si ou através das forças de segurança e de fiscalização, a impeça de exercer plenamente este direito no quadro da Resolução do Conselho de Ministros nº 89-A/2020 de 26 de Outubro”.
*Por despacho proferido nos autos em 29.10.2020, foi julgada a procedência da ilegitimidade passiva do Estado Português, com a consequente absolvição da instância e determinada a citação do Conselho de Ministros, para responder à presente intimação.
*A requerente, alega, em síntese: A Resolução do Conselho de Ministros nº 89-A/2020 que determina a limitação de circulação entre diferentes concelhos do território continental no período entre as 00,00h de 30 de Outubro e as 06,00 do dia 3 de Novembro de 2020, viola diversas disposições constitucionais, a saber, os artºs 18º, 19º, 44º, nº 1, 12º, nº 1, 13º e 41º da CRP, pondo em causa o direito à livre deslocação, ou à liberdade de locomoção, direitos que se inserem no conjunto de direitos, liberdades e garantias, aplicáveis e vinculativos a todas as instituições públicas e privadas, que só podem ser restringidos por lei directamente emanada da Assembleia da República e unicamente nos casos expressamente previstos na CRP, devendo as restrições limitar-se ao necessário para a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (nº 2 do artº 18º da CRP).
Mais alega que os órgãos de soberania não podem suspender os direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência declarados na CRP (artº 19º), o que não se verifica em concreto, pese embora, haver sido declarada a situação pandémica fruto da doença Covid-19.
Pese embora, a situação epidemiológica, Portugal enquanto Estado de Direito, tem de salvaguardar a garantia efectiva dos direitos, liberdades fundamentais e fazê-lo ao abrigo do princípio da separação de poderes.
O Estado Português, através do governo, não pode, pois, restringir a liberdade de circulação dos cidadãos portugueses através de mera Resolução do Conselho de Ministros, sob pena de violação do disposto nos artºs 18º, 19º e 44º da CRP, sendo por isso tal restrição absolutamente inconstitucional.
E nem tal restrição está justificada pelo DL nº 10-A/2020, de 13.03, uma vez que o mesmo apenas visou estabelecer medidas excepcionais temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus – e da doença Covid 19 – e os seus artºs 12º e 13º impõem tão só restrições de acesso a estabelecimentos e a serviços e edifícios públicos, nada restringindo quanto à liberdade de circulação dos cidadãos no território nacional; Nem tão pouco, a Lei nº 1-A/2020, de 19.03 [que veio estabelecer medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-COV-2 e da doença COVID 19, regulamentando o estado de emergência declarado, sendo que o seu artº 2º veio apenas ratificar o DL nº 10-A/2020, de 13 de Março] conferiu ao Governo poderes para, sozinho, limitar ou suspender direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
E nem mesmo a Lei nº 81/2009, de 21.08 [que instituiu o sistema de vigilância em saúde pública, prevendo o seu artº 17º um poder regulamentar excepcional do membro do governo responsável pela área da saúde], habilita o governo a suspender direitos, liberdades e garantias, como o direito de livre locomoção e deslocação em território nacional, prevendo inclusive o nº 3 daquele preceito que “as medidas previstas nos números anteriores devem ser aplicadas com critérios de proporcionalidade que respeitem os direitos, liberdades e garantias fundamentais, nos termos da Constituição e da lei”.
Também a Lei nº 27/2006 de 03.07 [Lei de Bases da Protecção Civil] apenas se refere a situação de alerta e de contingência – artº 8º, nº 6 – e não de calamidade e apenas determina que a competência para a declaração de situação de calamidade é do Conselho de Ministros – artº 19º.
Igualmente a al. g) da CRP apenas dispõe que compete ao Governo, no exercício de funções administrativas “praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades colectivas”.
Porém, nenhuma destas normas ou qualquer outra, habilita o governo a, sozinho e por sua exclusiva vontade, através de resolução do Conselho de Ministros, suspender durante 5 dias o direito à livre deslocação e circulação dos cidadãos portugueses.
E nem a situação de declaração de situação e calamidade prevista nos artºs 19º e seguintes da LBPC (artº 21º, nº 2, al. b)) permite tal possibilidade, sob pena de subversão absoluta desta lei e da própria CRP – a ratio legis desta norma é evitar o acesso de pessoas a determinado local onde se verifique a ocorrência de um acidente grave ou catástrofe, tal como definidos pelo disposto no artº 3º da própria LBPC e não de forma generalizada e sem um risco concreto, limitar em absoluto a circulação dos cidadãos, prendendo-os a uma área geográfica restrita por mera resolução do Conselho de Ministros, sem a fiscalização dos demais órgãos de soberania, como é o caso presente.
Ou seja, esta limitação não é constitucionalmente admissível por o Governo carecer deste poder e, por outro lado, tratando-se de uma limitação ou suspensão de um direito fundamental absolutamente desproporcional, porquanto não pode, sequer, prever-se que produza qualquer efeito a nível de controlo da pandemia.
Trata-se de uma medida populista e oportunista que, aliás, também limita o direito à liberdade de consciência, de religião e de culto previsto no artº 41º da CRP, impedindo milhões de portugueses de praticar plenamente o culto religioso.
Esta prática religiosa não implica a violação de quaisquer regras de segurança, salubridade ou de qualquer cuidado recomendado em face da pandemia actual e não é a proibição de deslocação para fora do concelho da sua área de residência nesse período de 5 dias que impedirá que os cidadãos que não se pretendam conformar com as recomendações de segurança para a sua saúde o passem a fazer, pois, estes continuam a reunir-se com a família e amigos seja em que período for.
Mas impede que cidadãos responsáveis que propugnam pelo cuidado com a sua saúde e a dos outros, mas também pela manutenção do Estado de Direito, sejam impedidos de circular livremente entre concelhos.
Tal resolução viola ainda os princípios da universalidade e da igualdade previstos nos artºs 18º e 19º da CRP, porquanto permite que cidadãos que residam no mesmo concelho dos seus familiares possam continuar a reunir-se entre si neste período, mas outros cidadãos apenas por residirem no concelho limítrofe ao dos seus familiares, já não o possam fazer, designadamente não podendo prestar os deveres de assistência entre os membros da mesma família.
Conclui que a lesão dos seus direitos fundamentais são iminentes e irreversíveis e qualquer decisão posterior a este período perderá efeito útil, encontrando-se demonstrada a possibilidade de lesão iminente e irreversível do direito à livre circulação e locomoção em território nacional da requerente.
*O Conselho de Ministros veio apresentar a sua defesa, por excepção [ilegitimidade passiva da Presidência do Conselho de Ministros e impropriedade do meio] e no mais impugnando o alegado pela requerente, concluindo no sentido da improcedência do pedido.
Dada a natureza urgente dos presentes autos e a decisão de fundo que irá ser proferida, não se dará cumprimento ao direito ao contraditório que assistiria à requerente, sob pena da presente intimação perder qualquer efeito útil que possa ser produzido.
*Sem vistos, cumpre decidir.
*2. FUNDAMENTAÇÃO RESOLUÇÃO DO CONSELHO DE MINISTROS Nº 89-A/2020 (DR nº 208/2020, 1º Suplemento, I série de 2020.10.26) «Face à situação excecional que se vive em Portugal e no mundo, e de modo a evitar a proliferação de casos registados de contágio de COVID-19 e um retrocesso na contenção da transmissão do vírus e da expansão da doença COVID-19 que as medidas adotadas permitiram, importa considerar, no âmbito da situação de calamidade, a limitação das deslocações das pessoas no período entre 30 de outubro e 3 de novembro de 2020.
Esta limitação, imposta com o intuito de conter a transmissão do vírus e a expansão da doença, visa evitar que a circulação de cidadãos para fora do concelho de residência habitual que poderia verificar-se em função do feriado de todos os Santos e do dia dos finados, contribua como foco de transmissão da doença.
Nesse sentido, permitem-se apenas deslocações para fora dos concelhos em casos muito específicos.
Assim: Nos termos dos artigos 12.º e 13.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, por força do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, do artigo 17.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto, do n.º 6 do artigo 8.º e do artigo 19.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, e da alínea g) do artigo 199.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve: 1 - Alterar a Resolução do Conselho de Ministros n.º 88-A/2020, de 14 de outubro, alterada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 88-B/2020, de 22 de outubro, nos seguintes termos: «1 - Declarar, na sequência da situação epidemiológica da COVID-19, até às 23:59h do dia 3 de novembro de 2020, a situação de calamidade em todo...
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