Acórdão nº 02295/19.7BELSB de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 11 de Março de 2021

Magistrado ResponsávelJOSÉ VELOSO
Data da Resolução11 de Março de 2021
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)
  1. Relatório 1. O MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA [MAI] - SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS [SEF] - interpõe «recurso de revista» do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul [TCAS], de 29.10.2020, que, confirmando sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa [TAC/L], de 27.01.2020, julgou procedente a acção deduzida por A……………..

    - identificado nos autos - na qual este impugna o despacho da «Directora Nacional do SEF», de 09.10.2019, que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional que formulara e determinou a sua transferência para Itália, e condenou o demandado MAI a reconstituir o procedimento sobre o pedido de protecção internacional formulado pelo autor, procedendo à sua audição prévia e à averiguação das condições de acolhimento de refugiados em Itália.

    Culmina assim as suas alegações de «revista»: 1- Resulta evidente que mal andou o tribunal «a quo» na ponderação do caso sub judice, porquanto, ao confirmar a sentença do TAC/L, incumpriu as normas legais vigentes em matéria de asilo, mormente no que respeita ao mecanismo da «retoma a cargo», ao qual a Itália está, no caso, vinculada; 2- Revela-se imprescindível, pois, a admissão do presente recurso de revista, atenta a clara necessidade de uma melhor aplicação do Direito pois, in casu, está em causa o abalo da confiança jurídica, corolário do princípio da certeza e segurança que se impõe a um Estado de direito, sobretudo, na aplicação da justiça; 3- Como, outrossim, e directamente, os princípios da legalidade e da igualdade; 4- Retenha-se que de harmonia com o artigo 18º, nº1, d), do Regulamento Dublin, e o artigo 37º, nº1, da Lei de Asilo, o ora recorrente procedeu à determinação do Estado-Membro responsável pela análise do PPI, procedimento regido pelo artigo 36º e seguintes da Lei de Asilo, tendo, no âmbito do mesmo, sido apresentada retoma a cargo às autoridades italianas, que, tacitamente, a aceitaram, atento o estatuído no nº2, do artigo 25º, do referido Regulamento de Dublin; 5- Consequente e vinculadamente, por despacho do ora recorrente, sob a égide dos artigos 19º-A, nº1, a), e 37º, nº2, da citada lei, foi o PPI considerado inadmissível e determinada a transferência do ora recorrido para Itália, Estado-Membro responsável pela análise do pedido de asilo, nos termos do citado Regulamento, motivo pelo qual o Estado português se torna apenas responsável pela execução da transferência, conforme plasmado nos artigos 29º e 30º do Regulamento de Dublin; 6- O ora recorrido nada comprovou quanto à falta de acolhimento, ou que esta se traduziria numa falta de respeito pelos seus direitos, não fazendo qualquer alusão a riscos efectivos ou potenciais do seu receio de regressar a Itália, ou que tivesse sofrido qualquer situação de ofensa aos seus direitos fundamentais ou tivesse sido alvo de tratamento desumano ou degradante na acepção do artigo 4º da CDFUE; 7- Inexiste pois qualquer alegação concreta, densa e particularmente grave efectuada pelo recorrido para que se possa concluir pela aplicação da «cláusula de salvaguarda», previsto no artigo 3º, 2º § do nº2, do Regulamento Dublin ou para imposição à entidade administrativa da promoção de diligências instrutórias; 8- Saliente-se que, no que tange às condições de acolhimento no Estado-Membro responsável, a Itália encontra-se vinculada pela Directiva 2013/33/UE, do Parlamento e do Conselho, de 26.06.2013, a qual estabelece normas em matéria de acolhimento dos requerentes de protecção internacional; 9- Em conformidade com a confiança mútua entre os Estados-Membros no âmbito do «Sistema Europeu Comum de Asilo» [SECA], existe uma forte presunção que as condições materiais de acolhimento a favor dos requerentes de protecção internacional nesses Estados-Membros serão adequadas, com respeito pelo Direito da União e pelos direitos fundamentais, e não o inverso, como de resto é propalado no aresto «a quo»; 10- O acórdão recorrido colide, assim, com o plasmado no Regulamento Dublin, e na jurisprudência; 11- Crê-se, destarte, inequívoco, que o acórdão recorrido carece de legalidade, porquanto, conforme precedentemente explanado, no estrito cumprimento do estatuto pela lei nacional e da União Europeia, sobre a matéria, se lhe impunha considerar impoluto o acto do ora recorrente em detrimento da sentença que assim o anulou; 12- Ao invés, assim não entendeu o tribunal «a quo», razão pela qual ora se pugna pelo decaimento do douto acórdão, não apenas face à incorrecta interpretação e aplicação da lei, mas outrossim à denegação da jurisprudência firmada, que malogradamente se verifica.

    Termina pedindo a admissão do recurso de revista e o seu provimento.

    1. O autor, ora recorrido, apresentou contra-alegações, concluindo assim: I. A douta sentença recorrida não padece de qualquer ilegalidade; II. O SEF, ora recorrente, considerou Itália responsável pela análise do pedido de protecção internacional apresentado pelo recorrido, bem como decidiu a transferência deste para esse Estado, estritamente com base em ocorrências registadas na base de dados do sistema «Eurodac» e na ausência de resposta, por parte daquela, ao pedido de retoma a cargo; III. De facto, entendeu o recorrente que não se encontrava obrigado a proceder a quaisquer diligências oficiosas no sentido de averiguar a existência dos pressupostos constantes da cláusula de soberania prevista no artigo 3º, nº2, do Regulamento [UE], porquanto nada foi alegado pelo recorrido, aquando da sua entrevista pessoal, que indiciasse a existência de falhas no acolhimento dos requerentes de asilo naquele Estado Membro, ao que acresce o facto de presumir que este respeitará os direitos fundamentais daqueles; IV. Porém, a fundamentação invocada pelo recorrente não pode, com o devido respeito, valer para a situação em apreço, na medida em que a entrevista pessoal do recorrido consistiu numa mera formalidade para justificar um fim: a sua transferência para outro Estado Membro, incumprindo o recorrente, ao contrário do que lhe competia enquanto órgão instrutor, o princípio do inquisitório previsto no artigo 58º do CPA; V. Efectivamente, no período em que permaneceu em Itália, o recorrido foi sujeito a discriminação, foi alojado em centros de acolhimento/casas para refugiados que não lhe conferiam o mínimo de condições dignas de habitabilidade e fazia uma única refeição principal por dia, razões pelas quais decidiu sair daquele país; VI. O recorrente desconsiderou a alegação de discriminação - expressão de um trato desumano ou degradante -, bem como ignorou informação objectiva, precisa e credível, e do seu conhecimento, constante de relatórios elaborados, designadamente, pelos «Conselhos Dinamarquês e Suiço para os Refugiados», «Conselho Português para os Refugiados», «ACNUR», «Médicos Sem Fronteiras», «Amnistia Internacional», bem como demais notícias veiculadas em diversos meios de comunicação, a que a sentença do TAC/L faz referência, que dão conta da existência de «falhas sistémicas no procedimento de asilo e no acolhimento dos requerentes de protecção internacional» em Itália; VII. «Falhas» essas que se traduzem na incapacidade daquele Estado Membro garantir a integração e o acolhimento dos requerentes de protecção internacional, sendo incapaz de providenciar ao alojamento, bem como, nalguns casos, ao acesso a água ou electricidade, alimentação, assistência médica e serviços sociais, gerando, em consequência, situações de carência extrema incompatível com a dignidade humana; VIII. Atendendo às informações prestadas pelas supramencionadas Agências/Organizações internacionais e não-governamentais, as condições de vida previsíveis que o recorrido encontrará em Itália, no caso de ser transferido, constituem, quer-se crer, um obstáculo à sua transferência; IX. Efectivamente, a transferência não deve ter lugar quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso da decisão de transferência conclua, «com base em elementos objectivos, fiáveis, precisos e devidamente actualizados e por referência ao nível de protecção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União, que esse risco é real para o requerente, pelo facto de que, em caso de transferência, este se encontraria, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema» - entendimento sufragado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, designadamente, no acórdão proferido no âmbito do Processo C‑163/17, de 19.03.2019; X. Sendo que, para efeitos da aplicação do «artigo 4º» da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [CDFUE], é indiferente que seja no próprio momento da transferência, durante o procedimento de asilo ou no termo deste que a pessoa em causa corra, devido à sua transferência para o Estado‑Membro responsável, na acepção do Regulamento Dublin III, risco sério de sofrer trato desumano ou degradante; XI. Acresce que o Estado italiano indeferiu o pedido de protecção internacional do recorrido, pelo que, no caso de este vir a ser transferido para esse Estado Membro, poderá ter de regressar ao seu país de origem, do qual fugiu por motivos políticos, existindo, portando, um risco de refoulement; XII. Assim, a aplicação automática do Regulamento [UE], na parte em que estabelece a transferência do requerente de protecção internacional para o Estado Membro considerado responsável pela análise do pedido, não atende à realidade existente em cada Estado Membro da UE e ignora as diferenças existentes entre os vários membros - quando é sabido que, apesar de a isso estarem obrigados, nem todos se encontram em condições de garantir a protecção dos direitos fundamentais dos requerentes de protecção internacional, como sucede, no presente caso, com Itália - como não tem em consideração a própria responsabilidade de Portugal pelo incumprimento das normas internacionais em matéria de asilo às quais também se encontra vinculado; XIII. Da aplicação automática do Regulamento [UE] nunca resultarão apuradas...

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