Acórdão nº 0188/20.4BELLE de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 29 de Abril de 2021

Magistrado ResponsávelCLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Data da Resolução29 de Abril de 2021
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO I. Relatório 1.

MINISTÉRIO DA DEFESA NACIONAL - FORÇA ÁREA PORTUGUESA e A…….. - AVIAÇÃO, LDA. - identificados nos autos – recorreram para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), de 17 de dezembro de 2020, que negou provimento ao recurso que interpuseram da Sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Loulé, de 8 de agosto de 2020, que julgou parcialmente procedente a ação proposta contra si por B….. - HELICÓPTEROS, OPERAÇÕES, ACTIVIDADES E SERVIÇO AÉREO, LDA., confirmando a anulação do «ato praticado pelo Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, datado de 12/03/2020, de exclusão da proposta da Autora e de adjudicação do Lote 1, a favor da proposta da A……, Lda., praticado no âmbito do procedimento de concurso público para a formação do contrato de aquisição de serviços de disponibilização e locação dos meios aéreos que constituem o dispositivo aéreo complementar do DECIR de 2020 a 2023 » e revogando-a «na parte em que determinou o convite ao esclarecimento da proposta apresentada pela Autora», decidindo «em substituição, pela admissão da proposta da Autora, com as respetivas consequências legais a extrair em sede de execução do julgado ».

2.

Nas suas alegações, o Recorrente MINISTÉRIO DA DEFESA NACIONAL - FORÇA ÁREA PORTUGUESA formulou as seguintes conclusões: «

  1. O presente recurso excepcional de revista é interposto nos termos e ao abrigo do n.º 1 do artigo 143.º e do artigo 150.º ambos do CPTA, tem por objecto o resultado interpretativo dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, alcançado pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 17 de Dezembro de 2020, com apelo aos critérios da materialidade e da razoabilidade aplicados no Acórdão desse Supremo Tribunal, de 19 de Novembro de 2020, e fundamenta-se na violação dos critérios legais impostos pelos citados artigos 236.º e 238.º e do n.º 4 do artigo 57.º do CCP para a definição do sentido da procuração da Gerente da B........, datada de 10 de Dezembro de 2013, face aos factos concretamente apurados pelas instâncias.

  2. A coberto da aplicação dos critérios da materialidade e da razoabilidade mobilizados no Acórdão de 19 de Novembro de 2020 desse Supremo Tribunal, o Acórdão em crise considerou que «a procuração outorgada ao referir-se aos poderes de submissão de propostas nas plataformas eletrónicas, comporta um mínimo de correspondência literal, ainda que imperfeitamente expresso, no sentido de atribuição de poderes ao representante para apresentar propostas, em nome da Autora, no âmbito de procedimentos pré-contratuais como o ora em apreço e, para através delas, obrigar ou vincular a sociedade para com (ou perante) as entidades adjudicantes, mediante a aposição da sua assinatura aos documentos que as integram.» (sublinhado nosso) C) Tal resultado de interpretação e aplicação do Direito – maxime dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil –, foi alcançado pelo Acórdão recorrido através da convocação, para preenchimento dos mencionados critérios de materialidade e razoabilidade, da nacionalidade (não portuguesa/espanhola) da Gerente da B........ e do procurador em causa, da complexidade do sistema normativo português da contratação pública e ainda (erroneamente) dos factos assentes sob as alíneas p) e q), dos quais, porém, consta que o documento apresentado foi assinado eletronicamente por C……………., não tendo sido junta qualquer declaração da Gerente da B........! D) No domínio da contratação pública a vinculação perante a entidade adjudicante tem lugar na fase do procedimento pré-contratual, com a apresentação da proposta e respetivos documentos, ocorrendo aqui um dos momentos críticos e determinantes da aplicação do princípio da concorrência na vertente da igualdade de tratamento dos operadores económicos.

  3. No presente recurso está em causa, inequivocamente, uma questão de direito substantivo do âmbito da contratação pública que se interliga com o Direito Civil e cuja dilucidação é essencial para uma melhor aplicação do Direito, uma vez que se trata de delimitar o alcance e o sentido da aplicação dos princípios da boa-fé e da concorrência e dos critérios da materialidade e da razoabilidade na interpretação e aplicação dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil no âmbito de procedimento pré-contratual de contratação pública, tendo presente o n.º 4 do artigo 57.º do CCP e a centralidade da assinatura da proposta no âmbito daquele procedimento.

  4. A intervenção do Supremo Tribunal Administrativo impõe-se como «válvula de segurança do sistema» e, consequentemente, a admissão do presente recurso de revista é, desde logo, indispensável para uma melhor aplicação do Direito.

  5. A questão de direito substantivo que está em causa, pelos distintos regimes jurídicos que convoca, dotados de especificidade relevante nas áreas do Direito em que se integram – contratação pública e interpretação da declaração negocial –, pela complexidade que envolve em matéria de articulação de princípios e normas de Direito Público e de Direito Privado, pela concatenação de regimes jurídicos que envolve e pela importância da matéria que constitui o seu objecto para entidades adjudicantes e adjudicatárias, é uma questão de manifesta relevância jurídica que, in casu, torna indispensável a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo.

  6. A questão jurídica em discussão tem uma utilidade social e económica que extravasa em muito os limites do caso concreto e que certamente tenderá a surgir num número indeterminado de casos futuros, sendo indispensável para os operadores públicos e privados uma orientação de sentido, no que se refere aos critérios de interpretação e aplicação dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil no quadro do ordenamento jurídico e do procedimento pré-contratual da contratação pública.

  7. Nos termos dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, nos negócios formais a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, a não ser que esse sentido corresponda à vontade real das partes, sendo o sentido da declaração determinado através da aplicação dos critérios gerais de interpretação previstos no n.º 1 do artigo 236º do Código Civil (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.11.2019, 6. Secção, Proc. n.º 598/11.8T2STC.E1.S1).

  8. Não ficaram provados nas instâncias quaisquer elementos relacionados com ou exteriores ao contexto da procuração, especificamente a nacionalidade estrangeira da Gerente da B........ e do procurador C…………. e o seu não conhecimento bastante, por não serem nacionais portugueses, da “complexa regulamentação nacional em matéria de contratação pública”.

  9. Não constando tais factos da matéria de facto dada como assente, não podem os mesmos constituir elemento interpretativo para apurar o sentido da declaração que consta da procuração da Gerente B........, de 10 de Dezembro de 2013 e não se pode – como fez o Acórdão recorrido –, com base neles, extrair um qualquer sentido, ainda que imperfeitamente expresso, a atribuir à declaração constante da procuração em causa.

  10. O único facto provado exterior ao contexto do documento – facto assente sob a alínea q) – foi a «procuração (com apostilha) outorgada em Ayamonte, perante notário, em 27 de Março de 2018, escrita em língua espanhola e com tradução para língua portuguesa devidamente legalizada, mediante a qual a B........, Lda. concedeu poderes especiais a C……………. para, entre o mais, “outorgar quaisquer garantias, escrituras, acordos, contratos, pactos e documentos similares, incluindo contratos públicos, candidaturas e licitações com autoridades de aviação civil, governos, ministérios, agências, administradores e entidades similares (…)” e “representar a sociedade em todos os assuntos relacionados com a apresentação de propostas para qualquer tipo de licitação pública ou privada na Espanha” (cfr. fls. 3584 a 3647 do processo administrativo)», à luz do qual a Gerente da B........ e o procurador em causa têm perfeito conhecimento das regras da contratação pública e dos poderes de representação necessários, sendo ainda evidente que quando quis conferir poderes de vinculação ao procurador, a Gerente da B........ fê-lo expressamente.

  11. O Acórdão em crise convoca factos não provados nas instâncias e invoca os critérios da materialidade, da razoabilidade e da prevalência da substância sobre a forma para justificar que «se deve interpretar o sentido da declaração emitida pela gerente da sociedade Autora, como tendo mandatado o representante dos poderes para vincular a sociedade ao teor da proposta submetida e à futura celebração do contrato.» N) Os critérios da materialidade, da razoabilidade e da prevalência da substância sobre a forma são critérios normativos, que exigem conhecimento, demonstração e avaliação das razões materiais adequadas à sua aplicação, como resulta, com toda a clareza, da motivação do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de Novembro de 2020.

  12. No caso vertente, não há qualquer sustentação para a convocação daqueles critérios, porque os factos assentes e dados como provados não comportam, nem permitem mobilizar os elementos exteriores ao contexto da procuração em que se fundamenta a Decisão em crise e os comportamentos do procurador que são convocados são comportamentos concretizados sem intervenção da Gerente da B........

  13. Estando em causa apurar o conteúdo e o alcance dos poderes representativos que foram atribuídos ao procurador impunha-se a intervenção da Gerente da B........ – o que não aconteceu –, não sendo admissível utilizar os actos praticados pelo procurador para justificar a titularidade dos poderes cuja existência se pretende demonstrar, como, aliás, bem entendeu a Sentença do Tribunal Administrativo...

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