Acórdão nº 0612/04 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 07 de Julho de 2004

Magistrado ResponsávelJORGE DE SOUSA
Data da Resolução07 de Julho de 2004
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: 1 - O MINISTÉRIO PÚBLICO e a FAZENDA PÚBLICA interpuseram recurso para este Supremo Tribunal Administrativo da sentença do Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Lisboa que rejeitou a graduação de créditos reclamados por esta, relativos a I.R.S. do ano de 1999.

A Fazenda Pública apresentou alegações com as seguintes conclusões: l. A Fazenda Pública reclamou créditos, referentes a I.R.S. do ano de 1999, respectivamente, conforme fls. 15 dos presentes autos.

  1. Os referidos créditos reclamados pela Fazenda Pública, foram liminarmente rejeitados por carecerem de garantia real, nos termos do art. 240º e 246º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

  2. Os créditos de natureza fiscal beneficiam de privilégios creditórios previstos no Código Civil.

  3. Nos termos da lei, o privilégio creditório consiste na faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores de serem pagos com preferência em relação a outros - art. 733º e seguintes do Código Civil.

  4. O legislador ordinário tem atribuído em leis avulsas privilégios a determinadas entidades, de que são exemplo os privilégios para garantia de créditos pelas contribuições da Segurança Social (Dec. Lei 103/80, de 9 de Maio).

  5. A Fazenda Pública entende que os privilégios mobiliários (e imobiliários) gerais (ou especiais) constituem garantias reais para efeitos de poderem ser reclamados nos termos do artigo 865º nº 2 do C.P.C., por terem por base um título exequível (certidão de divida).

  6. Face ao exposto, e tendo em atenção a doutrina e jurisprudência existente sobre os privilégios creditórios, a douta sentença incorreu em erro de direito na interpretação e aplicação das normas constantes nos arts. 240º, nº 1 e 246º ambos do CPPT e 866º do Código do Processo Civil.

  7. Assim, ao não serem admitidos os créditos reclamados pela Fazenda Pública, foram violados os artigos 733º. 736º, 747º e 748º todos do Código Civil, bem como, o artigo 111º do CIRS e 865º nº 2 do C.P.C..

Termos em que, deverá a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra no sentido de serem admitidos os créditos reclamados pela Fazenda Pública, como parece ser legal e de inteira Justiça.

O Ministério Público apresentou alegações, concluindo da forma seguinte: 1ª Na execução fiscal foi penhorada, em 29.2.00, a fracção ..., referente ao .... Piso ... do prédio sito na rua ..., n.º ..., ..., Algés.

  1. Em 4.2.03 a Fazenda Pública reclamou créditos relativos a I.R.S., relativo ao ano de 1999 e respectivos juros de mora.

  2. Tal crédito de I.R.S. goza de privilégio mobiliário e imobiliário geral sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou acto equivalente (arts. 111º do C.I.R.S., correspondente ao art. 104.º, na redacção anterior à Lei n.º 30-G/2000, de 29.12).

  3. A possibilidade da reclamação dos créditos que gozem de privilégio geral (mobiliário ou imobiliário) coloca-se nos mesmos termos em que anteriormente se colocava à luz do art. 865º, nº 1 do CPC, ex vi do art. 334º do CPT.

  4. Não ignorando a natureza jurídica do privilégio creditório geral, sempre a jurisprudência dos Tribunais Superiores admitiu, expressa ou implicitamente, a possibilidade da reclamação dos créditos que gozam desse privilégio.

  5. Nem poderia deixar de ser assim uma vez que quer os privilégios gerais quer os privilégios especiais estão incluídos no C.Civil na mesma secção VI, no Capítulo VI, relativo às garantias especiais das obrigações.

  6. Não é crível, de resto, que o legislador, atentos os interesses subjacentes, tenha querido subtrair os créditos a que atribuiu privilégio geral à possibilidade dos mesmos poderem serem reclamados no âmbito da acção executiva, sob pena de ficar esvaziada de sentido a atribuição do próprio privilégio.

  7. Mesmo que se entenda que os privilégios creditórios gerais não constituem garantias reais, mas meras preferências de pagamento, o seu regime é o das garantias reais, para efeito de justificar a intervenção no concurso de credores (O Concurso de Credores, de Salvador da Costa, 2ª ed. 2001, Almedina, pgs. 401 e 406).

  8. O enquadramento sistemático e teleológico das normas que fixam os privilégios em causa não consente a interpretação restritiva que da norma do art. 240º, nº 1 do CPPT se faz na douta sentença recorrida.

  9. A douta sentença recorrida viola o disposto nos art. 240º, nº 1 do CPPT, e art. 111 do C.I.R.S. correspondente ao art. 104.º, na redacção anterior à Lei n.º 30-G/2000, de 29.12.

Assim, concedendo-se provimento ao presente recurso, deverá ser revogada a douta sentença recorrida, proferindo-se nova sentença que gradue os créditos reclamados.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

2 - Embora não se discrimine expressamente a matéria de facto, na sentença recorrida dão-se como assentes os seguintes factos que poderão relevar para decisão do presente recurso jurisdicional: a) Foi penhorada, em 29-2-2000, a fracção ..., referente ao ... Piso ... do prédio sito na rua ..., n.º ..., ..., Algés; b) Foi reclamado um crédito de 8.660,52 pela Fazenda Pública relativo a I.R.S. do ano de 1999 e juros de mora 3 - A questão a apreciar em ambos os recursos jurisdicionais é a de saber se os créditos que gozam de privilégios imobiliários gerais podem ser reclamados em execução fiscal, ao abrigo da norma do art. 240.º, n.º 1, do C.P.P.T., que estabelece que «podem reclamar os seus créditos no prazo de 15 dias após a citação nos termos do artigo anterior os credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados».

Antes de mais, convém precisar que apenas está em causa nos presentes autos a questão atinente aos privilégios imobiliários gerais, e não também aos privilégios mobiliários gerais, pois o objecto da penhora é uma fracção de um prédio.

Na verdade, há privilégios creditórios mobiliários e imobiliários e só os segundos abrangem o valor de bens imóveis (art. 735.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

A classificação de coisas como móveis ou imóveis faz-se por exclusão, nos termos dos arts 204.º e 205.º, n.º 1, do Código Civil, sendo consideradas coisas móveis todas as que não são imóveis.

A fracção penhorada, integrando um prédio urbano, é um bem imóvel, à face do n.º 1 daquele art. 204.º.

Por isso, no caso em apreço, apenas é de equacionar a questão da possibilidade de reclamação de créditos que gozem de privilégio imobiliário geral, ao abrigo do referido art. 240.º, n.º 1, do C.P.P.T.

4 - O art. 111.º do C.I.R.S. (anterior art. 104.º) estabelece o seguinte: Para pagamento do IRS relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente.

A questão de saber se os créditos que apenas gozem de privilégio mobiliário geral podem ser reclamados em execução fiscal ao abrigo do n.º 1 do art. 240.º, tem vindo a decidida por este Supremo Tribunal Administrativo em sentido positivo, como pode ver-se pelos acórdãos de 2-7-2003, proferido no recurso n.º 882/03, de 22-10-2003, proferido no recurso n.º 946/03, e de 4-2-2004, proferido no recurso n.º 2078/03.

Em sentido contrário, porém, foi proferido o acórdão de 16-6-2004, no recurso n.º 442/04.

No caso em apreço está em causa um privilégio imobiliário geral e não mobiliário, por ter sido penhorado um bem imóvel. Embora a questão se possa equacionar em termos essencialmente semelhantes, este Supremo Tribunal Administrativo, como sempre, para cumprir a sua missão de definição do direito no âmbito do contencioso tributário, não poderá deixar de apreciar a questão que vem colocada, à face dos elementos normativos e argumentos jurídicos, sem se deixar impressionar por argumentos de autoridade alicerçados na tradição, pois para além de essa autoridade ser descabida em relação à jurisprudência de um Supremo Tribunal, num Estado de Direito a tradição jurisprudencial que deve ser mantida deve ser, naturalmente, a que estiver em sintonia com a lei e não a que com ela for incompatível.

5 - É ponto assente que os créditos de I.R.S. reclamados gozam de privilégio imobiliário geral.

Antes de mais, importa precisar a natureza dos privilégios imobiliários gerais, designadamente esclarecer se eles são ou não garantias reais ou direitos reais de garantia.

O artigo 751º do Código Civil, sob a epígrafe "Privilégio imobiliário e direitos de terceiro", estabelece que Os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.

No Código Civil, porém, existe uma norma que regula a oponibilidade a terceiros dos privilégios gerais - artigo 749º - norma esta que consagra um regime essencialmente diferente do previsto no artigo 751º, nos termos do qual O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidos pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.

Sendo o privilégio imobiliário geral previsto no artigo 111º do C.I.R.S., simultaneamente, um privilégio imobiliário e um privilégio geral, seriam, à partida, potencialmente aplicáveis ambas as disposições, pelo que a opção pela aplicação do regime do artigo 751º e a rejeição da aplicação do regime do artigo 749º, carece de uma explicação.

No âmbito do Código Civil, os privilégios imobiliários eram sempre especiais - n.º 3 do artigo 735º - e, por isso, a norma do art. 751º tinha em vista regular apenas os conflitos entre titulares de privilégios imobiliários especiais e os titulares de outros direitos reais.

Como referiam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, em Código Civil Anotado, volume I, 2ª edição, página 694, tratava-se de "uma solução discutível, porque pode afectar as expectativas dos negócios constitutivos de garantias reais". A solução, perante este fortíssimo inconveniente, apenas era...

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