Acórdão nº 01299/04 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 29 de Junho de 2005

Magistrado ResponsávelCOSTA REIS
Data da Resolução29 de Junho de 2005
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

A... e B..., por si e na qualidade de representantes e pais do menor ..., intentaram, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a presente acção de responsabilidade civil por actos ilícitos contra o Hospital de Santa Maria (HSM), o Prof. Dr. ..., o Dr. ... e as Enf.ªs ... e ..., pedindo a sua condenação, a título solidário, no pagamento da seguinte indemnização :

a) Esc. 26.800.000$00 (equivalente a € 133.678 euros) de danos patrimoniais ao A. menor; b) Esc. 1.825.000$00 (equivalente a € 9.103 euros) de danos não patrimoniais respeitantes a despesas realizadas até à data de interposição desta acção pelos AA. pais e o mais que vierem a despender por causa dos factos objecto desta acção a apurar em liquidação de sentença; c) Esc. 10.000.000$00 (equivalente a € 49.880 euros) ao A. menor e Esc. 5.000.000$00 (equivalente a € 24.940 euros) aos AA. pais a título de danos não patrimoniais, e d) juros legais contados desde a citação até integral pagamento, custas e procuradoria condigna.

Em resumo alegaram que, em 18.10.94, o identificado menor foi submetido no HSM a uma intervenção médico-cirúrgica a fim de lhe ser extraído o rim esquerdo, realizada pela equipa médica constituída pelos restantes RR., e que nessa operação, por "erro grave" e "grosseira negligência", lhe foi extraído o rim direito em vez do rim esquerdo.

Acrescentaram que "por causa da referida intervenção cirúrgica o menor ficou permanentemente mutilado e sujeito a diálise diária" e teve que se submeter a um ulterior transplante de rim com "elevados riscos de rejeição do novo órgão", o que o fez padecer muitas dores. E que eles, pais, também como consequência dessa intervenção, para além de sofrerem ao ver o filho doente, deixaram de auferir rendimentos de trabalho e tiveram que suportar muitas despesas relacionadas com viagens, medicamentos, consultas e alojamento.

As Rés ... e ... contestaram defendendo-se por excepção - invocando a sua ilegitimidade passiva - e por impugnação - não integravam a equipa médica de Cirurgia Pediátrica nem a equipa que realizou a intervenção em causa.

Os RR HSM, ... e ... contestaram para dizer que o Réu ... não tinha participado naquela intervenção e que a equipa médica que a realizou não tinha agido com "violação negligente das leges artis".

No despacho saneador a excepção de ilegitimidade invocada pelas RR ... e ... foi considerada procedente e, consequentemente, as mesmas foram declaradas partes ilegítimas e absolvidas da instância.

Por sentença de fls. 601 a 643 foi considerado que "o Réu ... não chegou a participar na intervenção cirúrgica realizada em 18/10/94, pelo que não pode ser considerado autor material do facto ilícito e, logo, responsabilizado. Quanto ao Réu ..., não se provou que agiu com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que estava obrigado, nem sequer com dolo". E, porque assim, e porque a lei restringia a responsabilidade directa dos titulares dos órgãos do Estado e demais pessoas públicas às situações em que se demonstrasse que os mesmos tinham agido com dolo, o Réu ... foi absolvido.

Deste modo, só o HSM foi considerado civilmente responsável e, por conseguinte, só ele foi condenado no pagamento parcial do pedido.

Inconformado com este julgamento o HSM agravou para este Tribunal formulando as seguintes conclusões : 1. A acção deveria ser julgada manifestamente improcedente por força da evidente ausência de factos que apoiem o pedido. De facto, resulta imediatamente da matéria de facto provada que, ao não se encontrar provado o "erro grave" dos RR. na execução da operação, a acção não pode proceder, uma vez que esse erro grave constitui a base do pedido de indemnização por responsabilidade civil.

2. Pela não verificação de alguns pressupostos da responsabilidade civil, a saber, ilicitude da conduta, culpa dos agentes e nexo de causalidade entre facto e dano (este pressuposto inexiste quanto apenas quanto aos danos morais e patrimoniais, no menor e nos AA. Pais, decorrentes do transplante renal e da sujeição a diálise), os RR. médicos não foram considerados civilmente responsáveis.

3. Em regra, só há responsabilidade do R. Hospital de Santa Maria se houver responsabilidade dos RR. Médicos funcionários ou agentes.

4. A douta decisão de que ora se recorre erra quando atribui a responsabilidade objectiva do Hospital em 2° Grau, sem verificação dos pressupostos da responsabilidade dos RR médicos, isto em violação do disposto nos artigos 2° e 4° do D.L. n.º 48.051, de 21.11.67.

5. Por outro lado, erra ainda a douta decisão de que ora se recorre, quando considera verificada a existência da falta de serviço, ou seja, de uma culpa funcional, sem que existam factos provados que possam levar a essa conclusão.

6. Com efeito, não será de considerar uma eventual possibilidade de "culpa funcional", posto que, foram disponibilizados todos os meios materiais e humanos, em devido tempo, foram praticados todos os actos médicos e terapêuticos exigíveis e considerados necessários e considerados como indicados, quer na fase pré cirúrgica, cirúrgica ou pós cirúrgica, não estando reunidos os pressupostos inerentes à responsabilidade civil, logo, não houve qualquer imputação de responsabilidade aos R.R médicos, e igualmente, não pode haver em relação R. Hospital de Santa Maria.

7. Não existem quaisquer elementos de facto ou prova que permitam retirar a conclusão de que houve uma falta ou mau funcionamento de serviço do R. HSM, aliás, nem os AA. fizeram tal alegação, antes se trata de uma ilação sem qualquer correspondência com a matéria de facto, o que aliás, configuraria uma violação do principio do dispositivo, porquanto nada foi pedido a esse título.

8. A douta decisão de que ora se recorre fundou a sua condenação no R. HSM na "culpa funcional", quando afirma que, "na impossibilidade de definir e delimitar claramente as responsabilidades de cada um dos (outros) médicos que faziam parte das equipas, a culpa na produção do facto lesivo terá de ser também imputada a um funcionamento defeituoso do serviço (..) há aqui uma culpa funcional, que não elimina as culpas individuais, mas desvaloriza-as completamente, dada a impossibilidade de se determinar as responsabilidades de cada médico face à prova apresentada. Porque o facto ilícito não é susceptível de ser apontado como emergente da conduta censurável de um só médico, ou de alguns deles, no caso, apenas do R. ..., deve ser imputado também e directamente a um mau funcionamento do HSM.

" 9. A culpa funcional atenua a responsabilidade dos médicos mas não exime da verificação da ilicitude de qualquer comportamento, ou seja, não transforma a responsabilidade por factos ilícitos subjectiva em responsabilidade objectiva.

10.

Tendo a douta sentença absolvido os RR. médicos, referenciando no que respeita ao R. ..., que o mesmo "não pode ser considerado autor material do facto ilícito e logo, responsabilizado" e em relação ao R. ..., "que não se provou que agiu com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achava obrigado, nem sequer com dolo", não pode haver responsabilidade objectiva de 2.° grau do R. Hospital de Santa Maria.

11.

Deste modo, se por um lado se conclui que os agentes não actuaram com culpa, certo é que, nos termos dos artigos 2° a 4° do DL n.º 48.051/67 o R. HSM, só seria civilmente responsável caso se invocasse e provasse a culpa dos médicos enquanto funcionários ou agentes, o que não se verificou.

12.

Pelo que, se coloca em crise a interpretação que a douta decisão recorrida efectua do disposto nos artigos 2° a 4° do D. L. n.º 48.051, de 21/11/67 e, se conclui que, o R. Hospital de Santa Maria só poderia responder havendo imputação do facto danoso ilícito e culposo ao agente.

13.

A interpretação a efectuar do dispostos legais atrás referenciados, em conjugação com o art.º 22.º da C.R.P. é de que, só haverá responsabilidade objectiva do R. Hospital de Santa Maria, havendo responsabilidade subjectiva do agente e imputação na pessoa do agente ou funcionário, o que, no caso concreto se provou não ter havido, logo, o R. HSM não pode ser responsabilizado.

Os Autores contra alegaram para sustentarem a manutenção do julgado.

Mostrando-se colhidos os vistos legais cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO I. MATÉRIA DE FACTO.

A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos : 1. Antes de o menor ... nascer, havia-se diagnosticado, desde o oitavo mês de gestação, que o mesmo padecia de uma uropatia com "bexiga grande" [cfr. doc.s de fls. 142, 143 e 145]*; 2. Em 31.08.94 o menor ..., com dois meses de idade, veio de Ponta Delgada, onde residiam os pais AA, e foi internado no Serviço de Pediatria do HSM, em Lisboa, porque se encontrava com uma complicação clínica grave, designadamente uma hidronefrose bilateral e uma pionefrose à esquerda [cfr. doc.s de fls. 141 a 143, 145, 157 e 173 e al. a) da especificação]*; 3. O doente ficou aos cuidados da equipa médica da Unidade de Nefrologia Pediátrica, com a colaboração da Unidade de Cirurgia Pediátrica [alínea b) da especificação]; 4. Equipa médica composta pelo Professor Dr. ..., que a chefiava, e pelo Dr. ... [alínea e) da especificação] ; 5. O doente tinha a bexiga e o rim esquerdo palpáveis e dolorosos pelo que foi algaliado [cfr. docs. de fls. 142 a 146 e 157] *; 6. Porém, manteve o rim esquerdo palpável e doloroso [cfr. docs. de fls. 146 e 157] *; 7. Uma ecografia, feita a 01.09.94, mostrou ureteres dilatados, rim esquerdo com contornos mal definidos e com má diferenciação e pionefrose à esquerda [cfr. does. de fls. 142, 143 e 151].

8. Dessa ecografia resultou a seguinte observação médica: «rim esq. - visualiza-se na loca renal c/ contornos mal definidos e com má diferenciação [aspecto relacionado com nefrostomia?); rim dir.

c/ uretero hidronefrose comunicante com 3 rietos. Não identifico extremidade insuf. do ureter. [...) repetir eco" [cfr. doc. de fls. 151] *; 9. Dada a situação infecciosa grave, que punha em risco imediato a vida do doente, este foi submetido...

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