Acórdão nº 067/20.5BCLSB de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 11 de Março de 2021

Magistrado ResponsávelFONSECA DA PAZ
Data da Resolução11 de Março de 2021
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA: 1.

A FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL (FPF), inconformada com o acórdão do TCA - Sul que negou provimento ao recurso que interpusera do acórdão do Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) que julgara procedente a impugnação da SPORT LISBOA E BENFICA - FUTEBOL, SAD [SLB, SAD] e revogara os acórdãos, de 12.02.2019 e de 9/4/2019, proferidos pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, dele interpôs, para este STA, recurso de revista, tendo na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões: “1.

O presente recurso tem por objeto o Acórdão proferido pelo TCA Sul, notificado em 16 de outubro de 2020, que confirmou o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto em 13 de julho de 2020 de revogar os acórdãos de 12 de fevereiro de 2019 e de 9 de abril de 2019, proferidos pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – Secção Profissional, através dos quais se decidiu aplicar à ora Recorrida as sanções de interdição do recinto desportivo e multa por aplicação do artigo 118.º do RD da LPFP (doravante designado por “RD da LPFP”).

  1. Em causa estava a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina pelo facto da Recorrida, sinteticamente, dar apoio a grupos organizados de adeptos que não se encontram em cumprimento dos requisitos legais e regulamentares aplicáveis, colocando em causa a boa imagem da competição bem como a segurança.

  2. A questão de direito a dirimir no presente caso diz respeito à autonomia entre o direito disciplinar e o direito contraordenacional, bem como às atribuições e competências concorrenciais das pessoas coletivas e dos órgãos com responsabilidades em matéria de prevenção da violência no desporto, o que, atentas as consequências que a tese sufragada pelo Tribunal Central Administrativo Sul pode vir a ter no futuro, urge ser apreciada por este Supremo Tribunal; 4.

    A questão em apreço diz respeito ao apoio dos clubes a grupos organizados de adeptos não legalizados, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, para além do impacto mediático destes casos, está relacionada com episódios de violência dentro e fora de recintos desportivos, o que tem, infelizmente, sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno; 5.

    O Tribunal a quo entendeu, erradamente, que a “Federação Portuguesa de Futebol não dispunha de competência legal para punir e aplicar à Sport Lisboa e Benfica o disposto no art 14º, nº 2, 7 e 8 da Lei nº 39/2009”, isto porque, o Conselho de Disciplina sancionou a Recorrida no uso do poder disciplinar que lhe foi legalmente conferido; 6.

    O Tribunal a quo entendeu, também erradamente, que a “Federação Portuguesa de Futebol na situação provada nos autos não podia aplicar e punir a Sport Lisboa e Benfica nos termos do art 118º do RD FPFP, por não estar verificado o perigo que constitui elemento do tipo legal.”, porquanto encontram-se preenchidos os elementos do tipo legal do artigo 118.º do RD da LPFP.”, isto porque, encontram-se preenchidos os elementos do tipo legal do artigo 118.º do RD da LPFP.

  3. A decisão que ora se impugna é passível de censura, porquanto existem vários erros graves de julgamento na interpretação e aplicação do Direito invocado; 8.

    Analisando a decisão arbitral e o Acórdão recorrido de que ora se recorre, existe diversa matéria considerada provada com grande relevância para as questões sub judice, designadamente para a questão do apoio que a Recorrida fornece aos Grupos Organizados de Adeptos (doravante GOA) ilegais, designados No Name Boys e Diabos Vermelhos, que o Tribunal a quo desconsidera por completo na sua tomada de decisão e que levariam ao desfecho contrário, ou seja, à confirmação das sanções aplicadas à Recorrida.

  4. A decisão do Conselho de Disciplina, o que aplica - e o que é objeto de impugnação perante o TAD - e só pode aplicar, em face da sua natureza, é uma norma disciplinar patente no RD da LPFP, em concreto, o artigo 118º.

  5. O Tribunal a quo olvida ainda assim que não nos movemos no campo da hierarquia de poderes mas sim de autonomia, desconsiderando as especificidades do ordenamento jurídico disciplinar; 11.

    O direito disciplinar e o direito contraordenacional (e também o penal) são, consabidamente, autónomos; 12.

    Ainda, atendendo ao princípio da autonomia acima mencionado, determina o artigo 56.º do Regime Jurídico das Federações Desportivas (doravante, RJFD) que “Se a infração [disciplinar] revestir carácter contra-ordenacional ou criminal, o órgão disciplinar competente deve dar conhecimento do facto às entidades competentes”; 13.

    A jurisprudência e doutrina portuguesas vêm de há muito, e de forma reiterada, a reconhecer no nosso ordenamento jurídico uma autonomia entre o ilícito criminal, de mera ordenação social e disciplinar - o mesmo é dizer, entre o processo criminal, contraordenacional e o disciplinar - persistindo em cada um deles uma capacidade autónoma de apreciação e valoração dos mesmos factos.

  6. A mencionada autonomia, caracteriza-se, no essencial, pela coexistência de espaços valorativos e sancionatórios próprios, tendo em conta a diversidade dos interesses específicos a que se dirige cada um daqueles procedimentos sancionatórios, bem como dos fundamentos e fins das respetivas penas e sanções: o processo criminal dirigido a interesses e necessidades específicas da sociedade em geral; o processo contraordenacional dirigido a interesses e necessidades de mera ordenação social e o processo disciplinar dirigido a interesses e necessidades de determinada instituição ou grupo social.

  7. A existência de um ilícito disciplinar não está prejudicada ou condicionada pela decisão que, sobre os mesmos factos, tenha sido, ou venha a ser tomada em processo penal ou contraordenacional (cf. art. 6.º do RD da LPFP e artigo 56.º do RJFD).

  8. As três formas de ilícito são exercidas autonomamente, sem que umas prejudiquem ou absorvam as outras. Precisamente por isso a Lei n.º 39/2009, de 30 de julho no Capítulo III faz alusão a crimes, ilícitos de mera ordenação social e ilícitos disciplinares.

  9. Esta troika sancionatória convive de forma independente há já largos anos; veja-se, por exemplo, as sanções contraordenacionais e disciplinares previstas para a venda irregular de títulos de ingresso, ou ainda, mais impressivo, o exemplo do incumprimento de deveres in formando e in vigilando dos adeptos, que recaem sobre os clubes e sociedades desportivas.

  10. Estamos perante responsabilidades distintas e autónomas; perante espaços valorativos e sancionatórios próprios, tendo em conta a diversidade dos interesses específicos a que se dirige cada um daqueles procedimentos sancionatórios (no caso, o contraordenacional e o disciplinar). Precisamente por isso, determina o artigo 55.º do RJFD que “o regime da responsabilidade disciplinar é independente da responsabilidade civil ou penal”.

  11. A Federação Portuguesa de Futebol e o IPDJ são pessoas coletivas distintas e com atribuições e objetos, também elas, distintas. Relevante é ainda assinalar que enquanto que o IPDJ é uma pessoa coletiva de direito público, a Federação Portuguesa de Futebol é uma associação privada que exerce alguns poderes públicos, não pertencendo, porém, à orgânica da Administração Pública.

  12. Não se percebe como pode o Tribunal a quo afirmar que o Acórdão do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol não tinha competência legal para sancionar a Recorrida nos termos em que o fez, na medida em que o IPDJ tem competência para instruir processos de contraordenação e aplicar coimas e sanções acessórias, designadamente pela violação no disposto no art. 14.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho.

  13. Incompetência absoluta existira, sim, se o Conselho de Disciplina da FPF tivesse aplicado uma sanção em resultado de um processo de contraordenação; ou que o IPDJ houvesse aplicado uma sanção disciplinar à Recorrida. Porém, nada disto aconteceu.

  14. A autonomia existente entre o procedimento disciplinar e contraordenacional nunca foi colocada em causa, nem pelo Conselho de Disciplina da FPF, nem pelo TAD e, muito menos, pelo TCA Sul e STA. Aliás, devido ao mau comportamento dos respetivos adeptos e simpatizantes, as sociedades anónimas desportivas e clubes, entre eles a Recorrida, são sancionados, semana após semana, pela violação de deveres regulamentares, tais como os previstos nos artigos 35.º do Regulamento de Competições (doravante, RC) da LPFP e 10.º do Anexo VI (Regulamento de Prevenção da Violência) do RC da LPFP e, consabidamente, tais deveres têm consagração legal no regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos.

  15. Em momento algum, qualquer daqueles Tribunais, incluindo o Supremo Tribunal Administrativo, entendeu que, pelo facto de os deveres constantes do regulamento de disciplina e de competição, da FPF ou da LPFP, terem, igualmente, consagração legal e a respetiva violação consubstanciar, também, a prática de uma infração contraordenacional, tal tinha como consequência necessária a incompetência do Conselho de Disciplina da FPF para, sobre os mesmos factos, exercer a ação disciplinar.

  16. Se seguíssemos o errado entendimento, agora sufragado pelo Tribunal a quo, não se poderiam sancionar, a título exemplificativo, a prática de infrações disciplinares relacionadas com o mau comportamento dos adeptos, porque o mesmo comportamento consubstancia uma infração contraordenacional e uma infração disciplinar (podendo até serem equacionados cenários em que existira ainda responsabilidade penal!).

  17. O direito disciplinar desportivo, enquanto sistema regulamentar integrado nas regras das competições, aplicar-se-á a uma parcela da realidade social, in casu, aos clubes e sociedades...

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